A pontapé

Correia da Fonseca

As ima­gens foram re­pe­ti­da­mente trans­mi­tidas, não de­certo porque fossem ex­ce­lentes mas porque re­peti-las con­vinha: eram ima­gens que atrai­riam te­les­pec­ta­dores aos ma­gotes, isto é, que ti­nham valor co­mer­cial, e que tes­te­mu­nhavam o re­púdio da es­tação que as trans­mitia pela vi­o­lência no con­texto es­colar/​ju­venil, o que in­di­ciava pre­o­cu­pa­ções éticas que ficam bem a qual­quer canal. De­pois, como sempre acon­tece quando a TV ou os media em geral re­velam factos que pro­vocam es­cân­dalo ou sus­citam ce­leuma, vi­eram os es­pe­ci­a­listas ou equi­pa­rados a ex­pli­carem mo­tivos, a es­gra­va­tarem raízes, a dis­cu­tirem con­sequên­cias. O caso não seria para menos, tra­tava-se de um caso de bru­ta­li­dade cho­cante pra­ti­cado por me­ni­ni­nhas cujo as­pecto de­certo não se as­se­melha ao dos an­tigos es­pan­ca­dores da PIDE, também eles muito vo­ca­ci­o­nados para pon­ta­pear na ca­beça, no ventre, nas costas. Ha­verá de­certo quem não aprecie o apa­ren­ta­mento aqui feito entre jo­vens sem cur­rí­culo e tor­ci­o­ná­rios pro­fis­si­o­nais, mas pa­rece ver­dade que um pon­tapé sel­vá­tico é sempre um pon­tapé, in­de­pen­den­te­mente da idade do pe­zinho que o des­fere e do sexo de quem o co­manda. Vi­eram, pois, os es­pe­ci­a­listas, al­guns ou todos eles evo­cando os tempos rudes que vi­vemos, a cha­mada crise de va­lores, as res­pon­sa­bi­li­dades dos pais ou da es­cola. Não estou certo de que nesse quadro de «aná­lise téc­nica» te­nham sido também re­fe­ridos al­guns con­teúdos que por aí na­vegam nas ondas dos meios elec­tró­nicos de co­mu­ni­cação, mas é de crer que sim. Do que não re­cordo que tenha sido fa­lado é da con­tri­buição da TV para a ad­missão da bru­ta­li­dade, ainda que ex­trema, como normal e acei­tável forma de com­por­ta­mento nas so­ci­e­dades de ci­vi­li­zação avan­çada em que es­tamos a viver.

 

In­du­tora de com­por­ta­mentos

 

Para quem tenha me­mória, luxo que aliás vai fal­tando a um cres­cente nú­mero de pes­soas acerca de um cres­cente nú­mero de as­suntos, essa es­pécie de ir­res­pon­sa­bi­li­zação da TV pela im­ple­men­tação de es­tados de es­pí­rito so­ciais, di­gamos assim, que en­caram a vi­o­lência com uma es­pécie de bo­nomia, como uma ca­rac­te­rís­tica que não vale a pena ques­ti­onar, pode sur­pre­ender. É que houve um tempo não exa­ge­ra­da­mente dis­tante em que o tema da vi­o­lência na TV e da con­se­quente ba­na­li­zação da bru­ta­li­dade como forma até um pouco ape­ti­tosa de com­por­ta­mento, foi as­sunto abor­dado e de­ba­tido até na pró­pria te­le­visão, em­bora na­tu­ral­mente não no prime time, este pre­ci­sa­mente re­ser­vado para tempo de an­tena dado à vi­o­lência em qual­quer das suas mo­da­li­dades, que são mais nu­me­rosas do pode supor-se. Eram con­versas que não con­du­ziam a nada de re­le­vante, é certo, mas que man­ti­nham a vi­o­lência sob con­de­nação e a te­le­visão sob sus­peita. Nelas se lem­brava, de­sig­na­da­mente, que sempre a te­le­visão é uma for­ne­ce­dora de mo­delos e uma in­du­tora de com­por­ta­mentos, ca­rac­te­rís­tica que de resto ex­plica e fun­da­menta a sua con­dição de líder dos su­portes pu­bli­ci­tá­rios, o que é con­sen­su­al­mente re­co­nhe­cido. Pa­rece claro, assim, que entre os com­por­ta­mentos in­du­zidos pela TV (con­sumos, moda, até mo­da­li­dades des­por­tivas, entre ou­tros) há-de des­tacar-se os que têm a ver com ape­tên­cias ins­tin­tivas ou pró­ximas de o serem: vi­o­lência, sexo, en­ri­que­ci­mento, afir­mação so­cial. Sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, estes ca­mi­nhos não são es­tan­ques entre si: o su­cesso so­cial muitas vezes des­crito nas es­tó­rias que a TV nos conta, so­bre­tudo se são made in USA, é ob­tido muitas vezes «a pon­tapé», em­bora a ex­pressão tenha neste con­texto uma acepção fi­gu­rada, e num certo sen­tido também os con­sumos de pro­dutos ditos de gama alta cons­ti­tuem «pon­tapés» des­fe­ridos na luta con­cor­ren­cial que é su­posta ser «a lei da vida» nestas so­ci­e­dades. De qual­quer modo, o certo é que essas con­versas que co­lo­cavam a TV como ar­guida do es­tí­mulo à vi­o­lência na vida real de­sa­pa­re­ceram, e nem agora, no caso da agressão co­lec­tiva a uma jovem, vi que ti­vessem re­gres­sado. Po­derá dizer-se que os jo­vens ac­tuais vêem muito menos te­le­visão do que a ge­ração an­te­rior, pelo que é im­pro­vável a in­fluência sobre eles exer­cida pela TV nesta como nou­tras ma­té­rias. Será ver­dade, mas talvez apenas se es­ti­vermos a falar de in­fluência di­recta. O caso é que os con­teúdos da Net, bem como mais re­cen­te­mente os das redes so­ciais, estão eles pró­prios con­ta­mi­nados pelos va­lores ou an­ti­va­lores da «ci­vi­li­zação te­le­vi­siva», se é que esta ex­pressão cabe, e por aí são in­tro­du­zidos nas ca­beças ju­venis. Ten­dendo a pro­duzir o mo­delo de jovem mais sin­to­ni­zado com essa efec­tiva per­versão que é a so­ci­e­dade ne­o­li­beral.



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