Visões: esta e a outra
Sei que foi no decurso de um daqueles teledebates em que a pluralidade é reduzida ao mínimo, decerto para não causar dano aos sempre preconizados consensos quanto ao que é considerado fundamental, ainda que não explicitado qual seja ele. Sei também que quem tão sabiamente falou foi uma das indiscutíveis competências que são frequentemente convidadas por esta ou aquela estação, tanto faz, para virem explicar o País, o mundo, a vida, às gentes ignaras que não tiveram acesso aos complicados meandros das politologias. Acontece, porém, que não tomei nota do nome decerto ilustre do raio do homem, isto é, do distinto especialista, nem dele consigo recordar-me, omissão grave da qual espero ser perdoado, tanto mais que, tal como se disse relativamente às estações de TV, também neste caso bem se pode dizer que tanto faz. Por uma decisiva razão: porque todos os frequentadores dos estúdios de televisão portugueses, com raríssimos momentos de excepção, estão integrados na ordem estabelecida com activo repúdio do comunismo, o que em princípio é quanto basta para que se lhes garanta o direito de acesso à antena. Foi, pois, um desses sábios com passaporte para a comunicação pela TV que em dada altura sentenciou que os comunistas têm da realidade uma visão virtual, o que me parece significar que vêem, ou julgam ver, o que lá não está e provavelmente nem sequer existe. O sintético ensinamento não suscitou a menor objecção, nem aliás isso era de esperar no seio de tão seleccionado grupo de especialistas, pelo que se pode entender que se tratava de uma verdade óbvia e indiscutível que aquela pequena assembleia aprovava por unanimidade. De resto, é sabido que a divulgação de verdades destas é um dos prioritários objectivos da televisão que diariamente nos visita.
Amputada e perigosa
Se bem entendi, o que confesso ser sempre de duvidar, o que o excelente senhor quis ensinar-nos foi que os comunistas são uns lunáticos, agarrados a projectos que já não se usam, fascinados por miragens que nos seus débeis entendimentos se substituem à realidade concreta e, o que será mais importante, se substituem também ao assegurado futuro do mundo não apenas nas próximas décadas mas também e sobretudo até ao fim dos tempos. Quanto ao momento actual, entendeu-se com suficiente clareza qual a visão daquele mestre: uma sociedade onde todas as crises acabam por passar, onde os efectivos lemes da condução das sociedades deverão ser confiados aos detentores dos poderes financeiros e económicos ainda que por intermédio de vassalos seus, para melhor resguardo dos que de facto decidem, onde os eventuais protestos terão de ser reprimidos com adequada eficácia e sempre, sempre, para defesa da democracia tal como a vivemos agora. E o mais importante e decisivo: que assim será para sempre, sendo ilusório contestar esta sociedade que é a mais perfeita das sociedades possíveis. Parece óbvio que também esta é uma visão do mundo e da vida. A dúvida que perante ela emerge, porém, é a de saber se se trata de uma visão realista, integrante de tudo quanto integra o modelo de sociedades dito ocidental. Na verdade, não parece que seja uma visão que descubra na realidade que está à vista de todos a miséria de variado grau que é o preço do poder dos que se situam como senhores da vida e também da morte; que se dê conta do desespero que explode por força das legiões de desempregados e dos milhões de velhos condenados a um amargo fim de vida porque as maravilhas da sociedade «de mercado» não podem chegar a todos; que se aperceba das «necessárias e democráticas» guerras de agressão que são como o pão para a boca, digamos assim, do triunfante capitalismo neoliberal. Em resumo, trata-se de uma visão tão amputada de elementos fundamentais da realidade que bem parece legítimo suspeitar de que é, também ela, talvez sobretudo ela, uma visão virtual no sentido de distanciada da verdade coerente com os factos. Com o irremediável handicap negativo de não conter qualquer semente de futuro diferente e melhor, de não ter lugar para a esperança, de ser um itinerário para o desespero, eventualmente para uma destruição de dimensões planetárias. Será também uma visão virtual, será, mas é também uma visão perigosa. Que dá razão à outra, à visão supostamente virtual dos comunistas lunáticos.