E passaram cinquenta anos

Francisco Mota

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Para todos os que lutaram, amaram e viveram com alegria

 A mesa estava posta. Os melhores pratos, toalhas, talheres, copos, tudo. Dispensava-se velas, mas uma música baixinho caminhava pelo ar daquela sala. Isabel e Jorge faziam naquele dia cinquenta anos de casados. Reformados dedicavam o seu tempo aos netos, aos filhos e aos queridos companheiros de lutas de tantos anos. Mas nesse dia, não estava o Pedro nem a família. Só eles.

Uma garrafa bem fria de branco do Douro e uma de tinto do Alentejo, na temperatura adequada, esperavam num carrinho ao lado da mesa, junto do lugar do Jorge. «Tu fizeste o peixe, começa tu!» Jorge levantou-se, foi à cozinha e trouxe arroz de feijão, com costeletas de sardinha fritas. «Nunca tinha feito isto, mas é bem fácil. Basta cozer o feijão encarnado, e depois com uma cebolinha esturgida, cozer o arroz no caldo com o feijão. As sardinhas são só abertas ao meio para tirar a espinha central, temperadas com sal durante uma hora, passadas por farinha e fritas. Sirvo-te e digo-te que me lembrei disto porque há muitos anos fui ao Porto com um economista, que gostava mais de gastronomia que de economia, o Mota, e que me pediu para eu o levar a um restaurante de comida verdadeira do Porto, popular de preferência. Levei-o a um que estava na Praça dos Poveiros, no cimo da Passos Manuel. Pedi costeletas de sardinha com arroz de feijão e ele desatou-se a rir pelo meu sentido de humor. Não percebi. Quando veio a comida foi a cara dele que mudou, disse-me que pensava que eu estava a gozar com ele, porque nunca tinha ouvido falar de tais pratos. Nessa altura, anos 60, não era conhecido do Mondego para baixo, nem o arroz de feijão nem muito menos as sardinhas abertas. Tomou nota de tudo e comeu até mais não poder. Não nos vemos muito, mas ficamos amigos». «Então foi por isso que fizeste este prato tão bom... Parabéns! Se me tivesses feito isto desde o princípio, há cinquenta anos, garanto-te que terias passado mais tempo na cozinha». Olharam-se nos olhos e chocaram os copos com o branco.

«Vou trazer o segundo prato», disse ela. Apareceu uma bandeja com favas estufadas e toucinho, chouriço, morcela com cominhos e entrecosto, tudo bem frito. Um leve cheiro a coentros sentia-se no nariz e na boca. Ao lado uma salada de alface ripada muito fininha, como as couves do caldo verde. Jorge provou, gostou, abriu a cara num sorriso, mas notou alguma coisa diferente. «É que desta vez tirei as duas cascas das favas, de forma que o sabor aumenta e algumas favas abrem-se em duas partes. Não se pode cozinhar muito porque ficariam como sopa. Devem estar cozidas mas durinhas. O entrecosto esteve temperado durante uma noite com um poucochinho de massa de pimentão só para dar cor, alhos pisados e vinho branco. Fritaram muito lentamente e com a gordura que soltaram e um pouco de água e coentros estufei as favas.»

Era um velho hábito que tinham, este de comentar as receitas e os pratos enquanto comiam. «Está uma maravilha. Tu cozinhas com arte e sabedoria e eu só cozinho com a saudade», disse Jorge. Olharam-se de novo e brindaram novamente, agora com o tinto.

Os problemas que a idade traz não lhes permitiam coisas doces. Mas tinham queijos. Tinham uma merendeira de Évora, um Serra a babar-se e um Azeitão idem. O queijo fê-los encher os copos novamente. O jantar era como tinham combinado, «tu fazes um prato e eu outro. Não podemos ver o que o outro fez até vir para a mesa», e um beijo tinha selado o contrato. Ali estava simples e bom o resultado.

Já tinham passado dos setenta, mas conservavam um espírito franco e livre, mesmo quando não entendiam certas coisas de hoje. Lembraram-se da sua vida em comum, como dum tempo que passou suave e bonito, apesar dalguma questíncula menor. Lembraram-se daqueles dezoito dias em que tinham alojado o amigo Zé Magro na sua casa de recém-casados. Foi uma experiência que os marcou desde 1962 até hoje. Lembraram-se como, nervosos e apaixonados tinham unido os seus corpos e almas, na casa que o amigo Jorge lhes tinha deixado por uma semana, fazia hoje exactamente cinquenta anos. Isabel disse com picardia: «sei que os miúdos estão a preparar uma grande festa para daqui a cinco meses, para comemorar o nosso aniversário de casados oficiais. E se lhes disséssemos que esse dia foi hoje?» «Tu sempre louca e sem medo de nada. Vamos pensar com calma. Além disso hoje já toda a gente faz o que nós fizemos». Os olhos dos dois brilhavam, fizeram mais um brinde e as mãos encontraram-se no meio da mesa. «Queria dizer-te um bocadinho dum poema do Carlos de Oliveira. Dizer-to como se não tivessem passado cinquenta anos:

Para ti, meu amor, é cada sonho/ de todas as palavras que escrever,/ cada imagem de luz e de futuro,/ cada dia dos dias que viver./ Transpondo os versos vieste à minha vida/ e um rio abriu-se onde era areia e dor./ Porque chegaste à hora prometida/ aqui te deixo tudo, meu amor!



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