Governo quer instrumentalizar organizações

Quem tem medo das associações de mulheres? (e de quais?)

Lúcia Gomes

Com Abril destruíram-se as grilhetas fascistas que aferroavam o direito de reunião e associação mantendo-o sob a égide e autorização do governo fascista, que tudo via, tudo controlava. E no texto constitucional de Abril? Pode ler-se, no seu artigo 46.º que «Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal», bem como que «as associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas (...).»

Governo quer obrigar as associações a declarar, entre outros, os valores das quotas dos associados e que disponibilizem a identificação de todos os membros dos órgãos de estatutários (qual ficheiro Edviges de Sarkozy, fichando os dados pessoais de quem pe

Image 6829

Texto que mais uma vez se vê ameaçado, não só na ânsia da sua revisão pela direita e pelos partidos que apoiam as suas políticas, para quem a Constituição não é mais do que um entrave, mas que se vê ameaçado todos os dias, pelas práticas dos vários governos, que golpeiam direitos fundamentais na sua acção política e na sua organização, nomeadamente na tentativa histórica de condicionamento da luta organizada.

Há várias décadas que o movimento associativo, o movimento sindical, os movimentos de organização de interesses populares em torno de questões sociais específicas têm sido alvo de tentativa de controlo político, nas suas mais diversas formas. Muitos (demasiados) são os exemplos: repressão do direito de manifestação, de propaganda eleitoral, do direito de reunião, de pressão quando se pretende exercer o direito à greve, de limitação e mesmo proibição no interior de empresas do exercício da liberdade sindical.

Mas muitos mais são aqueles que não são notícia e que vêm operando, em consequência das políticas de direita e pela via institucional, num caminho que tem que ser parado antes que seja tarde, e que tem vindo paulatinamente a afectar os movimentos de mulheres, de pessoas com deficiência, de jovens, entre tantos outros, através da criação de mecanismos que permitem, cada vez mais, que os governos se imiscuam na autonomia, independência e actividade das associações, condicionando-as no seu objecto, na sua actividade, nas formas de participação institucional, tentando, mesmo, aceder aos dados pessoais dos seus membros.

Mal anda a democracia quando nem a vergonha impede que se avancem nestes caminhos que, afinal, muitos de nós julgavam desaparecidos.

 

Image 6830

 

A ofensiva aos direitos das mulheres
e aos direitos das suas organizações

 

O XVIII Governo Constitucional criou o Gabinete da Secretária de Estado para a Igualdade (SEI), envolvendo-a em promessas de um verdadeiro compromisso com as políticas de igualdade de direitos para as mulheres e, porventura, terá criado a expectativa de que as organizações de mulheres teriam um importante interlocutor, que respeitaria o seu património de acção, o seu papel e autonomia de acção num quadro em que se esperaria o reforço da participação das diversas expressões do movimento das mulheres nas políticas públicas que directa e indirectamente dizem respeito às mulheres, aos seus problemas, anseios e aspirações.

A falta de intervenção governamental em domínios de sua responsabilidade é patente por exemplo no caso da discriminação das trabalhadoras corticeiras, caso há tantos anos denunciado pelas estruturas sindicais e pelo PCP. Num sector dominado pelo monopólio Amorim que apresenta lucros astronómicos (11,5 milhões de euros no primeiro semestre de 2010), as mulheres ainda recebem 97 euros a menos do que os homens para trabalho igual, mesmo apesar do acordo entre Sindicato (após uma luta de vários anos), associação patronal (APCOR) e Ministério do Trabalho para pôr fim a esta vergonhosa discriminação, que agora foi empurrado para 2015. Assim, as autoridades competentes não têm actuado, permitindo que a situação se prolongue indefinidamente.

No mesmo sentido a flagrante discriminação em função da maternidade na empresa TAP (reconhecida pelo Ministério do Trabalho e pela Autoridade para as Condições do Trabalho dado que as mulheres, por terem estado de licença por maternidade perderam o prémio de assiduidade), a Secretária de Estado, várias vezes directamente questionada pelo PCP, sempre se escusou a assumir essa discriminação.

É aliás de salientar o Relatório sobre o progresso da igualdade entre mulheres e homens no trabalho, no emprego e na formação profissional no ano de 2009 da Comissão para a Igualdade no trabalho e no emprego que demonstra o resultado concreto das «políticas de igualdade»:

a) «Independentemente de serem as mulheres que possuem maior nível habilitacional, continuam a ser, no entanto, as categorias que correspondem a um nível de qualificação mais baixo aquelas que apresentam uma taxa de feminização mais elevada» (…) «A segregação no mercado de trabalho em função do sexo torna-se mais evidente na análise do emprego segundo a actividade económica; as mulheres predominam no sector terciário (55,8%).» (págs. 25 a 27)

b) O desemprego de longa duração é mais expressivo nas mulheres (49,7%) e são elas que em 2009 representam exclusivamente o aumento da taxa de desemprego de longa duração. (pág. 30)

c) Salários – no sector privado as mulheres auferem cerca de 81,5% da remuneração média mensal dos homens, mas se se falar de ganho médio (que contém outras componentes do salário: trabalho suplementar, prémios, etc.), elas apenas ganham 78,3% do salário dos homens. (pág. 36) O diferencial salarial aumenta conforme aumentam as qualificações. Para quem possui licenciatura ou mais, as mulheres apenas ganham 67,8% na base e 67,2% no ganho, correspondendo a uma diferença de 33%!

d) Sobre a articulação entre a vida familiar e vida profissional, o próprio relatório reconhece que os equipamentos não são suficientes: «observou-se que a falta de serviços de acolhimento a crianças é penalizadora sobretudo para as mulheres. (…) 15,6% das mulheres afirma (…) não trabalhar, ou trabalhar menos horas, devido à falta de serviços de apoio e cuidado às crianças». (pág. 76)

Entretanto, analisando o IV Plano Nacional para a Igualdade – Género, Cidadania e Não Discriminação, 2011-2013, recentemente aprovado pelo Governo PS, verifica-se que se caracteriza por um conjunto de medidas de carácter residual e completamente ineficaz enquanto instrumento de combate às desigualdades e discriminações das mulheres ao mesmo tempo que não faz qualquer referência às organizações de mulheres.

Por detrás da bandeira panfletária da «igualdade de género» hasteada por este Governo e pelo Gabinete da Secretária de Estado respectiva, esconde-se o seu inequívoco comprometimento com as opções estruturantes do Governo – orçamentais, económicas e sociais – que estão na razão directa do aumento das injustiças e desigualdades sociais na sociedade portuguesa e, consequentemente, da espiral de discriminações entre mulheres e homens que lhe está associada, penalizando injustamente as condições de vida e de trabalho das mulheres, lançando as novas gerações de mulheres na incerteza, ao mesmo tempo que a partir do aparelho de estado é disseminada uma cultura de «conformismo» e de «passividade» perante os problemas.

Regista-se, entretanto, que o Governo aposta na diluição dos problemas e direitos específicos das mulheres reduzida a uma questão de cidadania e não como uma questão estrutural da organização da sociedade (indissociável da natureza do modelo económico e social); na desvalorização do papel do movimento das mulheres em Portugal nas suas diversas expressões enquanto expressão de vontade e de luta das mulheres através de diversos mecanismos tais como: a prioridade aos financiamentos das ONGM por via de uma linha de apoios comunitários em detrimento do financiamento pelo Orçamento do Estado, «empurrando» as organizações para a intervenção em torno das áreas temáticas decididas pelo Governo e pela UE (e não para as suas prioridades), ao mesmo tempo que se registam constantes atrasos na restituição de verbas e gravosos condicionamentos à execução das actividades previstas.

 

Estatuto das Conselheiras/os para a Igualdade

 

Este estatuto prevê alterar a representação das ONG (incluindo as associações de mulheres) no Conselho Consultivo da CIG, pessoalizando a sua representação, determinando as características que as Conselheiras e Conselheiros para a Igualdade deverão ter, chegando ao cúmulo de fazer depender a sua nomeação de despacho ministerial (retirando o direito às associações de designarem os seus representantes), podendo o Governo nomear e destituir quem bem entender. A ser aprovado, este diploma vem aprofundar, ainda mais, o já parco espaço de participação das associações no Conselho Consultivo das ONG da CIG, pondo nas mãos do Governo a decisão de nomeação, a determinação do perfil de quem participa, objectivamente governamentalizando um espaço que deveria ser de audição e discussão das organizações.

 

O Registo Nacional das ONGM

 

A organização do registo das organizações não governamentais do Conselho Consultivo da CIG decorre da alínea q) artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 164/2007, de 3 de Maio cujo objecto estatutário se destine essencialmente «à promoção dos valores da cidadania, da defesa dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e da igualdade de género», nos termos previstos na lei. Ora o diploma em discussão pública, justificado precisamente pelo artigo citado, vem impor apenas às associações de mulheres, e não a quaisquer outras que se encontrem no âmbito referido, que procedam ao seu registo, sendo ainda mais exigente do que diplomas que regulam o registo de pessoas colectivas.

Assim, o Governo do PS, vem impor às associações de mulheres, e apenas a estas, uma série de requisitos e exigências para que possam fazer parte do Conselho Consultivo da CIG e usufruam de direitos que estão consignados em leis anteriores, nomeadamente desde 1988.

Este projecto de diploma prevê a criação do registo das ONG de Mulheres, obrigando a que os estatutos e objectivos das associações sejam idênticos aos objectivos da CIG, numa perspectiva meramente colaboracionista, obrigando a que as associações declarem, entre outros, os valores das quotas dos associados e que disponibilizem a identificação de todos os membros dos órgãos de estatutários (qual ficheiro Edviges de Sarkozy, fichando os dados pessoais de quem pertença a uma associação de mulheres), dando inclusive poder ao Governo de anular o registo das associações que este entenda que se afastem do seu objecto (fazendo lembrar precisamente um Decreto de 1954, assinado por Salazar, que previa a aprovação dos estatutos das associações pelo Governo Civil, e a possibilidade de extinção das associações caso os seus estatutos não fossem conformes à «ordem pública»).

Estes diplomas, no fundo, pretendem de uma forma enviesada rasgar direitos de que as associações de mulheres dispõem, e que resultaram da luta das organizações de mulheres corporizadas em iniciativas legislativas do PCP, bem como controlar a sua actividade e representação, acedendo inclusive aos dados pessoais dos seus membros, lembrando as práticas mais condenáveis e atentatórias de limitação ao direito fundamental de associação.

A Lei tem vindo a estabelecer os direitos das associações de mulheres, nomeadamente, o direito de representatividade, de participação, de informação, de prevenção e controlo (Lei n.º 95/88, de 17 de Agosto), direito de antena, direito a apoio da administração central, regional e local para a prossecução dos seus fins (Lei n.º 10/97, de 12 de Maio), apoio técnico e financeiro do Estado regulamentado pelo Decreto-Lei n.º246/98, de 11 de Agosto.

Contrariamente ao amplamente propagandeado discurso sobre necessidade de participação da dita «sociedade civil», que tanto diz prezar, utilizando-a para se desresponsabilizarem das suas funções e competências sociais, em matéria de igualdade entre mulheres e homens o Governo PS afirma e regula uma «sociedade civil» de rédea curta, sempre controlada pelos seus objectivos e pelos da União Europeia. Este é um caminho de retrocesso social, porque visa anular e fragilizar um importante património da luta das mulheres pela sua participação social e política: a necessidade da sua organização e unidade, da luta das mulheres pelos seus objectivos específicos, com o contributo da acção do movimento das mulheres nas suas diversas expressões, mas com tradução igualmente na sua participação no movimento associativo popular, nos sindicatos, nos locais de trabalho e em outros importantes movimentos de massas. Este caminho visa negar o papel do movimento das mulheres, enquanto expressão organizada da luta das mulheres e condicionar a diversidade das suas expressões e o direito à autonomia de acção e participação na definição das políticas que de forma directa e indirecta dizem respeito às mulheres.

 

Diplomas em «discussão pública»

 

Os organismos governamentais que tutelam a área da Igualdade colocaram à «discussão pública» – isto é, enviaram por correio electrónico a algumas associações do CC da CIG – dois projectos de diploma que vêm dar um golpe cirúrgico na autonomia das organizações de mulheres, na senda de um caminho já há muito encetado de menorização e limitação da sua acção. Estão, pois, em discussão pública dois diplomas que visam o Registo Nacional das Associações de Mulheres e o Estatuto das Conselheiras e Conselheiros para a Igualdade.



Mais artigos de: Temas

Eleições e ruptura

Mais de 52% dos portugueses abstiveram-se de votar nas eleições para a Presidência da República.

A cobertura mediática da campanha foi má e perversa. Jornais, televisões e rádios desinformaram intencionalmente. A televisão foi especialmente indecorosa. Os analistas habituais, todos defensores do sistema, exibiram-se em exercícios de pequena política em mesas redondas, entrevistas e artigos.

PS e PSD aliados para destruir o poder local

Estamos perante um processo de reforma administrativa em Lisboa manipulado desde o seu início para ser utilizado a nível nacional.

Vai ao encontro de outras ofensivas dos governos do PS, contra os hospitais e maternidades, contra as escolas, contra estruturas de serviço público desconcentradas em todo o País, que foram encerradas, esvaziando ainda mais o interior.

A subversão da Constituição ao serviço das desigualdades

«Os planos de desenvolvimento económico e social têm por objectivo promover o crescimento económico, o desenvolvimento harmonioso e integrado de sectores e regiões, a justa repartição individual e regional do produto nacional, a coordenação da política económica com as políticas social, educativa e cultural, a defesa do mundo rural, a preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo português».