Fechar com chave falsa
Foi, na RTP1 e no programa «Grande Entrevista», uma ronda anunciada como sendo de entrevistas com todos os candidatos à próxima eleição presidencial. A sua ordem poderia obedecer a diversos critérios. Poderia ser a ordem alfabética pelo último apelido ou pelo primeiro nome, o que garantiria a perfeita neutralidade da RTP. Poderia ser por ordem de idades, com o mesmo resultado. Não foi adoptado nenhum destes critérios nem qualquer outro que com eles se parecesse, tendo sido escolhido um capaz de sugerir um crescendo de importância ao longo da série de entrevistas e que findou, como na passada segunda-feira se viu e ouviu, com a presença de Cavaco Silva. Dir-se-ia que «Grande Entrevista» escolhia esse final para dizer ao País, isto é, aos eleitores, que a sequência de entrevistas se encerrava com chave de ouro, com o candidato mais importante, com aquele que desde logo se dava como vencedor. Era, pois, pelo lugar que ali lhe era reservado, qualquer coisa de parecido com uma entronização tácita que assim de algum modo se antecipava. Porém, mesmo neste quadro de duvidosa isenção, era suposto que Cavaco Silva, candidato, seria tratado como todos os candidatos já entrevistados, isto é, confrontado com um bom punhado das críticas e mesmo das acusações que lhe têm sido dirigidas. E isso no tom duro usado por Judite de Sousa nas anteriores entrevistas desta mesma série. Nada disso aconteceu, porém. Sucedeu mesmo que durante os primeiros vinte minutos, isto é, em dois terços do programa, Cavaco Silva foi tratado como se estivesse ali na qualidade de Presidente da República e não como candidato à reeleição. E ele, que sempre usa aquele tom professoral e presidencial de que tanto evidencia gostar, foi como PR que respondeu. Estava completamente perdida a desejável paridade com os demais candidatos. Tornava-se óbvio que a sugerida chave de ouro com que a série de entrevistas encerraria mais se parecia com uma chave falsa.
Uma oportunidade perdida
Se eu me atrevesse a usar uma expressão de mau gosto e pouca educação para caracterizar o tom com que Judite de Sousa conduziu a entrevista sei muito bem o que escreveria. Como não o faço, direi apenas que a jornalista usou de uma prudência que constituiu uma quebra das afoitezas que foram de regra nas entrevistas anteriores, de uma evidente fuga aos temas na verdade importantes a colocar a um candidato a Belém que antes de o ser foi «o homem do leme», para usar aqui uma expressão em tempo utilizada pelo próprio Cavaco, e a um Presidente que se enredou em manobras não apenas ridículas mas também piores que isso, como nos casos do infelicíssimo entremez das supostas «escutas» e do inacreditável «agente infiltrado» do Governo num repasto havido algures numa ilha adjacente. Um jornalista precisa ter coragem, mais ainda quando as circunstância implicam a necessidade de a comprovar. Se Judite de Sousa quisesse colocar ao entrevistado perguntas que o embaraçassem e não meras «deixas» convenientes, nem precisava de ter muito trabalho: bastava-lhe percorrer sumariamente as questões que outros candidatos têm suscitado e que não são poucas. Ficou-se pelo Caso BPN, a que Cavaco se limitou a dar as habituais não-respostas laterais ao essencial. Mas se Judite quisesse introduzir na entrevista matéria nova, tinha material disponível: como ela decerto não ignora, anda a percorrer a Net a imagem de um papel timbrado da PIDE/DGS que é um questionário em tempos preenchido pelo próprio Cavaco Silva. A autenticidade do documento é atestada não só pela assinatura mas também por um erro ortográfico no item 19, imagem de marca de um homem consabidamente com escassa vocação para as letras. Embora não sendo suposto que o actual PR se tivesse alguma vez disponibilizado para uma permanente colaboração com a criminosa polícia política do fascismo, bastando-lhe talvez afirmar-se perante ela como praticante activo de preconceitos sociais hoje inadmissíveis, teria sido uma oportunidade para que a jornalista desse ao entrevistado o ensejo de se explicar quanto ao desagradável questionário. Não o fez, e foi pena: o programa teria então adquirido um momento de frisson em lugar de se manter na pasmaceira em que sempre se manteve. Adivinha-se, é certo, que o senhor Presidente gostou dele assim, que o achou à sua medida. Mas o telespectador eleitor terá provavelmente achado que aquela chave de ouro final, além de falsa, era ferrugenta.