A Crise de Identidade do Dirigente Desportivo Benévolo
A acção do dirigente benévolo integra três funções que se interliguem entre si:
- O conhecimento generalizado sobre as diversas funções e tarefas desenvolvidas pelo clube;
- A dimensão técnica capaz de lhe permitir o desempenho de certas funções mais específicas (gestão, animação, representação, etc.);
- A defesa dos valores sociais e culturais que o clube deve desempenhar.
Em torno destas três funções, aliás habitualmente mal conhecidas, gerou-se grande confusão. Ela explica, em larga medida, as dificuldades em entender, em toda a sua extensão, o papel do dirigente. Mas, para além dela, existem interesses mais ou menos obscuros que, no fundo, procuram alcançar dois objectivos: ou fazer com que o dirigente integre a sua acção e a sua forma de pensar na visão economicista dominante, ou considere o «benévolo» como uma mão-de-obra gratuita manipulável com facilidade pelos interesses do desporto comercializado.
De facto, estes dois objectivos confundem-se, mas convém distingui-los na medida em que o primeiro parte da própria convicção pessoal (mais ou menos consciente) do dirigente, e a segunda de um projecto manipulatório com ramificações diversas. Esta situação tem conseguido impedir uma análise capaz de fugir às ideias feitas promovidas pelo desporto comercializado e opõe-se à análise do papel e da função do grande número de dirigentes que não se integram, pelas próprias condições concretas dos seus clubes, naquele domínio.
Nestes clubes, de raiz popular e directamente integrados na comunidade, a expressão das três funções referidas assume pleno significado, mas também é mais difícil entendê-las e pô-las em prática.
A tendência geral, mais ou menos formulada com nitidez, é de seguir na corrente mercantilista considerando que o dirigente, para ser eficaz, deve dominar as novas técnicas de comercialização. O dirigente benévolo passa, então, a constituir uma espécie de técnico de segunda classe, um sub-profissional, um simples utensílio ao serviço de uma técnica.
Infelizmente esta concepção penetra cada vez mais profundamente a consciência de todo o campo associativo, provocando grandes dificuldades na compreensão das verdadeiras funções do dirigente. Inclusive, esta situação cria atritos e mal entendidos nas relações com os técnicos.
Na realidade, o dirigente benévolo não é obrigado a conhecer os processos técnicos, seja qual for a sua natureza. O dirigente não pode, nem deve, deixar-se assaltar pela angustiosa dúvida de que não possui conhecimentos suficientes.
Certamente que o dirigente benévolo que possua conhecimentos nas diferentes áreas só beneficiará com isso. Mas aquilo que se lhe pede é a capacidade em compreender os mecanismos genéricos. A especificidade da sua acção é a de se constituir como um generalista sem substituir os profissionais.
A função do dirigente benévolo não é do mesmo tipo daquela que deve caracterizar a acção do técnico. Hoje é frequente ouvir dizer-se que o primeiro deve saber gerir e «fazer o marketing» do seu clube. Mas isso acontece desde o início do movimento associativo. E deve dizer-se que os dirigentes, generalistas por vocação e força das circunstâncias, não se saíram nada mal dessas funções.
Convém, por isso, não alinhar com a depreciação generalizada que, na actualidade, é lançada sobre o dirigente benévolo. Bem pelo contrário, as provas que deu e que, bem vistas as coisas, continua a dar, demonstram uma competência generalizada que, aliás, enobrece a própria função.
A função do dirigente benévolo consiste, basicamente, em afirmar os valores sociais da actividade desenvolvida pelo seu clube. Só ele o pode fazer, e quando tal não se verifica, como acontece actualmente em muitos casos, esses valores desaparecem.
A dúvida sobre os valores sociais do clube traduzida pela falta de reconhecimento «real» do seu papel pela sociedade constituí um dos aspectos essenciais da «crise» do associativismo e a verdadeira causa da crise do dirigismo benévolo. Não é, portanto, qualquer questão ligada ao «management», ao «marketing», ou a qualquer outra técnica com designação mais ou menos anglo-saxónica, que pode explicar ou justificar essa crise.
A função do dirigente benévolo é a de abrir novas vias, dar um sentido à acção desenvolvida pelo clube de acordo com o projecto social que defende. Naturalmente, quando este projecto não existe, torna-se difícil não só entender a acção que deve ser desenvolvida, como perceber o sentido que deve tomar.
Nestas circunstâncias o dirigente benévolo não sabe quem é nem para onde vai: perde a sua própria identidade e com ela a do próprio clube. Evidentemente que esta questão não tem origem nem é específica do movimento associativo. Diz respeito a toda a sociedade e é no próprio projecto de sociedade que se tem de procurar a origem e o significado das crises.