O «carola» – as formas contraditórias de uma função

A. Mello de Carvalho

O cons­tante afir­mado «apo­li­tismo» do «ca­rola» está em re­lação di­recta com o «sa­cros­santo» prin­cípio da neu­tra­li­dade po­lí­tica do des­porto. Esta questão, já tra­tada tantas vezes, ainda exige ser es­cla­re­cida junto de muitos di­ri­gentes que con­ti­nuam a afirmar a sua «in­de­pen­dência» po­lí­tica, jul­gando que, com essa «pro­fissão de fé» li­quidam as in­fluên­cias po­lí­ticas dentro do clube. De facto, re­ferem-se, acima de tudo, à in­ter­venção par­ti­dária e a uma ati­tude «po­li­ti­queira», e não a uma visão «nobre» da ac­ti­vi­dade po­lí­tica que se re­fere à ac­ti­vi­dade hu­mana que pre­tende criar con­di­ções para que se ve­ri­fique uma «con­vi­vência livre e vo­lun­ta­ri­a­mente ad­mi­tida», for­te­mente par­ti­ci­pada (uma con­cepção entre muitas, na­tu­ral­mente).

Na re­a­li­dade, mais do que para qual­quer outro actor da ac­ti­vi­dade des­por­tiva, a afir­mação do apo­li­tismo está re­fe­rida à de­fesa de po­si­ções con­quis­tadas dentro da es­tru­tura e que não se querem perder. No fundo, es­tamos pe­rante um dos «me­ca­nismo» mais efi­cazes de ma­nu­tenção da si­tu­ação vi­gente e da con­ti­nui­dade do di­ri­gente (com fe­nó­menos de «ge­ron­to­cracia» muito evi­dentes na ac­tu­a­li­dade).

No fundo, a afir­mação do apo­li­tismo pela es­tru­tura des­por­tiva deve, acima de tudo, ser en­ten­dida si­mul­ta­ne­a­mente como de­fesa da hi­e­rar­quia (e até do sis­tema sócio-po­lí­tico) vi­gente, e como a re­cusa em de­ter­minar, ana­lisar e ex­trair con­clu­sões acerca da re­a­li­dade em que o clube se in­sere e a acção do di­ri­gente des­por­tivo se ins­creve. Na­tu­ral­mente que esta ati­tude as­sume, antes de tudo, um ca­rácter con­for­mista e con­ser­vador. Nestas con­di­ções não é di­fícil com­pre­ender as di­fi­cul­dades de re­cru­ta­mento de novas di­rec­ções, e a pró­pria ati­tude de afas­ta­mento, e até de re­jeição, de uma grande parte da ju­ven­tude.

Trata-se de saber se é pos­sível que este pro­blema as­suma uma outra con­fi­gu­ração, quando en­ten­dido na pers­pec­tiva do des­porto como pro­cesso hu­ma­ni­zador. Aqui, com frequência, as ques­tões que se co­locam neste campo re­sultam de fe­nó­menos de au­tên­tico «ca­ci­quismo».

A «in­dis­pen­sa­bi­li­dade» do di­ri­gente as­senta, fun­da­men­tal­mente, na con­vicção que cada um possui de que não há nin­guém capaz de o subs­ti­tuir, e que a ac­ti­vi­dade do clube «mor­rerá» com o seu afas­ta­mento. Esta con­vicção leva a que a mai­oria destes di­ri­gentes con­si­dere o clube como uma coisa «sua», numa ati­tude do­mi­nada por uma grande carga afec­tiva.

 

Pro­ble­má­tica com­plexa


De facto, é fre­quente ve­ri­ficar-se até que ponto a saída do di­ri­gente, «pai» do clube, da ac­ti­vi­dade, ou da ini­ci­a­tiva, pro­voca um vazio, por vezes ex­tre­ma­mente di­fícil de pre­en­cher, que pode levar ao ex­ter­mínio de qual­quer deles. Isto sig­ni­fica que o di­ri­gente as­sumiu uma po­sição de ex­tremo cen­tra­lismo no fun­ci­o­na­mento, ex­cluindo ou, in­clu­sive, «guer­re­ando», a pre­sença de ou­tros ele­mentos que po­de­riam cons­ti­tuir, ou en­traves a uma acção que se julga única, ou, pelo menos, com quem terá de di­vidir os «lu­cros» da acção em­pre­en­dida e dos re­sul­tados al­can­çados.

Em nossa opi­nião, esta si­tu­ação ajuda também a ex­plicar a de­sa­fec­tação da ju­ven­tude pela in­ter­venção no pró­prio clube. De facto, a ex­pli­cação do de­sin­te­resse dos jo­vens, não pode en­con­trar-se ex­clu­si­va­mente na in­fluência pre­ju­di­cial da so­ci­e­dade do­mi­nada pelos in­te­resses eco­nó­micos. Na re­a­li­dade, o jovem não en­contra, quase sempre, «es­paço» para se in­serir no clube de acordo com as suas pró­prias ex­pec­ta­tivas. Mas esta é uma outra questão.

A con­ju­gação dos re­sul­tados da aná­lise da «de­voção», do apo­li­tismo e da «in­dis­pen­sa­bi­li­dade» do di­ri­gente vo­lun­tário, ou do «ca­rola», cons­ti­tuem, em nossa opi­nião, um pro­cesso ex­pli­ca­tivo de parte (mas só de parte!) da crise do di­ri­gismo as­so­ci­a­tivo. Apesar deles apa­re­cerem aqui com uma to­na­li­dade mais ne­ga­ti­vado do que po­si­tiva, é ne­ces­sário re­co­nhecer o ca­rácter es­sen­cial da ati­tude que leva muitos mi­lhares de di­ri­gentes a de­dicar grande parte das suas vidas à ma­nu­tenção da vida dos seus clubes.

Por outro lado, é também in­dis­pen­sável tomar em con­si­de­ração o valor so­cial da par­ti­ci­pação deste grupo de ci­da­dãos, que dão vida a es­tru­turas por vezes únicas em todo o te­cido da co­mu­ni­dade. Por isso, aquele juízo de to­na­li­dade ne­ga­tiva deve ser re­la­ti­vi­zado à luz da grande im­por­tância da função so­cial do clube e da in­ter­venção do di­ri­gente «ca­rola».

O mi­li­tan­tismo de que se falou deve ser en­qua­drado nesta com­plexa pro­ble­má­tica. De outra forma não se en­ten­derá o pleno sig­ni­fi­cado dos clubes po­pu­lares e da sua função nas co­mu­ni­dades em que se in­serem.



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