Os fracassos de uma gestão «social» – III

Jorge Messias

Se as «crises» do capitalismo (internas e externas, financeiras e cambiais, do crédito e do consumo, globais e sectoriais, etc.) afectam gravemente as economias e os pobres, elas nem ao de leve beliscam o Vaticano. Os nebulosos resultados financeiros publicados pela banca «eclesiástica» dão indicações de lucros em ascensão, um «milagre» que brota no deserto e só é comparável à dos lucros dos milionários, em plena crise de recessão. Quanto pior melhor, ao que parece. «O segredo da magia» – respondem cardeais e banqueiros – «consiste numa boa gestão». E, também, no tratamento, «dinâmico e inovador» das «novas oportunidades».

Os bispos portugueses aderem a esta versão dos factos, como é evidente. E reconhecem que em Portugal, um pequeno país pobre e atrasado em relação à Europa, dependente e mergulhado no fosso lamacento que separa os pobres dos ricos, a «gestão social» de modo algum é tão fácil de alcançar como em Roma. De que modo gerir a miséria e o desemprego quando os mitos do «combate à pobreza» ameaçam desabar a cada instante? Como investir pouco e lucrar muito fazendo crer simultaneamente, ao povo crente, que perante a ruína só lhe resta juntar as mãos em oração e confiar no Eterno? omo conciliar entre si Deus e o Diabo, os direitos dos humildes e as mentiras dos poderosos, paralisando nos homens a ânsia de lutar ?

A fase que se atravessa é tremendamente delicada, mesmo para aqueles que põem os olhos em Roma. Mas é a esses que nos devemos dirigir.

 

As sábias gestões e a luta de classes

 

É evidente que a hierarquia católica conhece que, no mundo capitalista, as lutas contra a pobreza sempre foram deliberadamente travadas pelo poder com meios inadequados e sem grande vontade de execução. Sistematicamente, nem o pouco que se anunciou ir fazer se fez. Ficou-se sempre aquém. Depois, foi só «embandeirar-em-arco». Os bispos têm esta noção realista mas a grandeza de Roma é para eles invariavelmente bem mais importante que um desempregado. As notícias que chegam sobre a «caridade» e a «filantropia» são reveladoras.

Em termos de «gestão social», de uma administração de recursos «equilibrada» que garanta o bolo para os ricos mas não negue as migalhas aos pobres, a hierarquia portuguesa partiu atrasada. Prendeu-se em excesso aos tempos passados. Agora, tenta «queimar etapas».

O conceito de «luta contra a pobreza» é substituído pela fórmula «negócio social para o combate à pobreza» e apaga-se o papel condutor do Estado Social no esforço comum pelo fim da pobreza e pela melhor distribuição da riqueza. Avança a ideia de que, a partir de agora, essa função compete a vastos consórcios que unem em torno dos objectivos sociais a contribuição «filantrópica» de empresas com tecnologias de ponta, fundações, lobbies financeiros, banca, uniões de misericórdias, ONGS, IPSS, Igreja, «sociedade civil» e... o Estado. Esta nova tábua de salvação do «já visto» propõe-se entregar os serviços sociais a um futuro organismo interdisciplinar capaz de fundir numa só forma, o público e o privado, o confessional e o não-confessional, o lucrativo e o não-lucrativo, as fundações particulares e o Estado. Um projecto financiado não só pelos investimentos dos «accionistas» mas, também, pelos lucros do próprio «negócio social». Em Portugal, este projecto encontra-se já em fase de instalação, embora nele pouco se fale.

A iniciativa partiu da vinda ao nosso país, em 2007, do Prémio Nobel da Paz, o paquistanês Muhamed Yunus, fundador do Banco Grameen que introduziu entre nós o «microcrédito». A ideia mereceu a imediata adesão do Millenium BCP (Jardim Gonçalves, Opus Dei) e dos outros grandes bancos portugueses. «Por coincidência», nos anos seguintes, já em plena «crise», estes bancos iriam acumular resultados altamente positivos e em 2009 registariam lucros de 1445, 6 milhões de euros! Toda a banca nacional participa na economia social de mercado em expansão. Um sector que afirma produzir 5% do PIB português e ter criado, entretanto, 700 mil novos postos de trabalho, directos ou não. O seu campo de acção preferencial é constituído pelas IPSS, cerca de 2000, das quais recebe diariamente (e apenas na rede de gestão financeira) mais de 10 mil consultas. Trabalha igualmente com o Poder Local.

As tentativas de subversão do Estado Social parecem evidentes em mais esta tentativa alucinada da Igreja e dos poderes estabelecidos para fragilizar e destruir as conquistas sociais do povo português.

Tentaremos ver mais fundo em todo este projecto que se prende, aliás, com outros, também esquecidos mas já em curso de concretização.



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