O prognóstico
Havia gente muito preocupada (o que não espanta, afinal a informação que a TV nos fornece há-de servir para alguma coisa), género «-Ai Jesus, se o orçamento não é aprovado o que vai ser de nós, lá se vão nove séculos de independência!». Procurei tranquilizar os que gemiam mais perto de mim: garanti-lhes que o orçamento seria aprovado, sim, e por sinal isso é que era mau, e que quanto à independência não se perderia mais do que já se perdeu. E acrescentei ainda que poderiam não acreditar em mim, sujeito sem especiais clarividências de ordem política, mas que reparassem no que vinha surgindo na televisão, provavelmente até a contragosto das diversas estações: Jerónimo de Sousa, que não é um qualquer, a explicar com muita clareza que as aparentes discordâncias que ao longo dos dias pareciam separar PS do PSD, Sócrates de Passos Coelho, não eram coisa para levar a sério, que sem muita demora eles haveriam de chegar a acordo. Não só porque nada de grave os diferencia verdadeiramente (excepto, é claro, a disputa pessoal e um pouco mesquinha sobre quem deve ter residência oficial em São Bento), mas também e sobretudo porque só o acordo corresponderia às ordens vindas de Bruxelas ou de Berlim. Veio a ver-se, é claro, que Jerónimo de Sousa tinha razão. Que me lembre, até foi dele a única voz a denunciar o carácter enganoso, de mera ficção representada para português ver, das supostamente difíceis diferenças que separavam os dois líderes canoros do «centrão» lusitano: José Sócrates, tenor de voz já um pouco gasta pelo muito uso que lhe tem dado; Pedro Passos Coelho, barítono com conhecidos estudos líricos que terá sido obrigado a abandonar agora por ter sido chamado a desempenhar papel principal neste peculiar espectáculo integrável no género que a musicologia designa por «ópera bufa».
Mais nada
É claro, porém, que este entremez das diferenças quanto ao orçamento, das negociações em diversos lugares (com o happy end numa casa particular, o que tornou o desenlace um poucochinho ridículo, já se vê) constituiu para as estações de TV uma inesperada novela de suspense que grudou aos telecomandos muitos milhares de telespectadores a fazerem, durante dias a fio, um zapping ansioso em busca da estação mais bem informada: será agora, será ainda hoje, será amanhã de manhãzinha? Eu, porém, já ouvira Jerónimo de Sousa, já sabia do destino que nos esperava. No mundo incomparável dos futebóis, é comum ouvir-se dizer que «prognósticos só no fim do jogo». Neste caso, porém, o caso era diferente: entendendo-se as regras do jogo para lá das aparências, conhecendo-se lindamente os que aparentemente se opunham, era possível e até fácil um prognóstico imediato, e foi isso o que Jerónimo de Sousa veio lembrar-nos. Não havia motivo, pois, para se estar atento a cada telenoticiário na espera ávida das «últimas». Por mim, até me dei ao luxo de durante o fim-de-semana ir apanhar um poucochinho de chuva alentejana, não exactamente por ela, a chuva, mas por saber que em Serpa se iriam reunir prestigiados intelectuais vindos de diversos e distantes lugares do mundo para falarem do nosso tempo e do tempo que virá a seguir. Daqui resultou, aliás, que acabei por ficar atento, durante três dias, aos noticiários das diversas estações, sobretudo aos da operadora vinculada ao serviço público, não por causa do falso suspense quanto ao orçamento, mas sim porque ainda mantinha a ingénua esperança de que pelo menos uma dessas estações registaria, mesmo que muito brevemente e ainda que com algum veneno inoculado na notícia, um evento tão relevante no plano político e até cultural como o que decorria em Serpa. Parecia-me isso obrigatório até por força de uma elementar honestidade informativa. É claro que não aconteceu notícia nenhuma: a TV portuguesa, se ainda que apenas remotamente ouve falar de marxismo, fecha os olhos, tapa os ouvidos, puxa da tesoura. Foi em vão, pois, que percorri as gravações dos telenoticiários daqueles dias. Abarrotei olhos e ouvidos com ansiedades quanto ao acordo que o País, trémulo de angustiadas dúvidas, esperava (dúvidas que bem podiam ter sido evitadas se mais gente tivesse estado atenta à lucidez de Jerónimo de Sousa). Também ouvi, naturalmente, notícias das eleições brasileiras que dariam a vitória a Dilma e diversas informações de menor relevância. Mais nada.