Misericórdias e hierarquia: negócio é negócio
A União das Misericórdias Portuguesas oficiou à Conferência Episcopal Portuguesa acerca das águas paradas em que, na prática, caíram as conversações encetadas entre as duas entidades em 2007. Tratava-se, então como agora, da urgência em aclarar os termos de uma operação interna em curso na área social da Igreja. E tão graves são os riscos potenciais desta situação que a própria UMP se permitiu afirmar, numa carta cujo texto agora divulgou após ter tentativas de contactos falhadas com a sede episcopal, que o objectivo principal das Misericórdias continua a ser «sempre com serenidade e bom senso, evitar conflitos públicos e fracturas entre os católicos portugueses». Palavras solenes que geralmente se reservam para as grandes ocasiões… E como se isto não bastasse, na carta o secretariado nacional da UBP recordava o seguinte, acerca da inesperada publicação de um de decreto da CEP que encerrava o assunto: «A verdade é que esta publicação, nestes termos (…) provocará confusão nas pessoas e um debate rigoroso e difícil que envolverá também, inevitavelmente, o Estado Português e a própria União Europeia».
A questão central em causa não é nova, apenas se manteve historicamente adormecida.
No passado, os conflitos entre as bases sociais da Igreja e as suas hierarquias foram sistematicamente emudecidas pelas cúpulas eclesiásticas. A Igreja não admitia no seu seio a contradição. Depois, mudaram-se os tempos mas não as vontades. Não só na esfera dos leigos católicos mas em toda a restante área social da Igreja criou-se o mito da unidade na diferença. Admitiu-se no clero uma nova consciência social e no «povo católico» um novo conceito de justiça. O ético e moral até aqui dominante transformava-se num canal límpido, como alternativa ao socialismo ateu e à luta de classes. Tratava-se, de certo modo, do regresso aos mitos da «teologia da libertação».
As Misericórdias sugerem agora aos bispos católicos que a sua identidade continua a resultar do movimento associativo espontâneo dos católicos portugueses. Tal como outras associações laicas, as organizações sócio-caritativas católicas devem afirmar-se como factores de transformação e como formações privadas, autónomas e independentes das tutelas. Por isso mesmo importa-lhes criarem a imagem de associações privadas de fiéis, autónomas e independentes da hierarquia.
Os bispos replicam que tudo isso até pode ser verdade mas que a autonomia tem os seus limites e que às Misericórdias católicas cumpre respeitar como sempre a tutela eclesiástica. Só o episcopado conhece, na íntegra, os interesses da Igreja. E apenas o episcopado sabe traduzir correctamente a universalidade das políticas da verdadeira religião.
Naturalmente que o clero reconhece às Misericórdias (assim como às IPPP, às ONG, etc.) o direito à auto-administração dos seus patrimónios (os quais, no entanto, continuam a ser eclesiásticos, sublinham os bispos) e à tomada de certas decisões de âmbito restrito – locais, burocráticas e administrativas. Mas, mesmo nestes casos, os bispos continuarão a deter nas suas dioceses – agora e como sempre – o poder de «remover os responsáveis pelas Misericórdias dos seus cargos».
O balanço provisório que é possível fazer-se a este volume incerto de informações conduz à ideia de estar-se em presença de manobras estratégicas de diversão que procuram ocultar o sentido principal das grandes movimentações da Igreja, nesta fase crucial do papado de Ratzinger. Sobretudo no actual panorama português, onde cada leitura simples de intenções é fácil de aceitar por parte de um povo explorado e sedento de esperança.
A verdade, porém, é que se em Portugal se instalasse um regime de direita, mais fácil seria a uma Igreja oficial católica e populista consolidar a sua influência. Justamente por isso, a Igreja católica prefere calar-se perante os crimes que o Poder caricaturalmente socialista dia a dia comete. Porque, caso nos tempos próximos este «resvalar para a direita» se acentue, o velho projecto da República Cristã terá, enfim, pernas para andar!
«Limpar a estrada» é a primeira tarefa dos obreiros de Deus. É necessário que o povo simples aceite que a Igreja está a seu lado mas não se deve comprometer nas batalhas dos homens. O que explica os silêncios do Patriarcado e descriminaliza o clero nos sucessivos escândalos em que este se vê envolvido. Mas é preciso pensar no futuro. Neste sentido, nada há de mais convincente do que projectar a ideia de um corpo da Igreja dividido em si mesmo mas onde os fracos vencem os fortes. Só assim a Igreja chamará a si parte importante da imensa massa dos explorados e reprimidos.
Os grandes negócios continuarão a fazer-se e os lucros a dividir-se pelos mesmos, como até aqui. E à Igreja será possível introduzir mais uma «ponta de lança» entre as massas populares.