Entendimentos

Quem der uma vista de olhos pela imprensa do princípio da semana, há-de arrepiar-se com os números por aí badalados, desde as manchetes aos suplementos e aos jornais económicos. A coisa está feia, mas os jornais não se arriscam a cavar um pouco mais fundo nas causas dos números, com as raras excepções que não provêm de economistas, analistas e comentadores, mas sim de gente que faz – também raros – juízos inteligentes. Preferem, regra geral, chafurdar na novela dos entendimentos e dos desentendimentos entre os dois maiores partidos da política de direita, abundantemente noticiados, «explicados» e especulados. Que Sócrates cedeu, diz-se. Que Cavaco Silva intercedeu, repete-se. Que Passos Coelho acabou por ceder. Mas a novela, com os seus sustos a espevitar a alma dos espectadores, não podia acabar aqui. Que Passos Coelho afinal não cede, anuncia-se. Que Sócrates ameaça. Por fim, como iremos ver, tudo acaba em bem. Nuvens cor de rosa e laranja entrelaçam-se em fundo, enquanto o par de concorrentes dança o tango. Sobre os problemas dos trabalhadores, dos reformados, dos desempregados, do povo em geral. A plateia mais fina há-de aplaudir.

 

Números

 

Mas vejam só os números: dizem uns que os portugueses são quem mais vai apertar o cinto, logo a seguir aos gregos. Mas, quanto ao salário mínimo, os nossos compatriotas vêm na cauda, a boa distância do Peloponeso. Quanto aos médicos, o corte de salários a 25 mil profissionais vai agravar a fuga para os privados, dizem outros. Por outro lado, ou pelo mesmo, os polícias, os juizes e os professores vêem as promoções congeladas, e o Governo não renovou contratos a 300 psicólogos nas escolas. Entretanto, feitas as contas, um jornal da praça afirma que quem ganha menos vai fazer mais descontos.

Mas também há a propaganda contrária que, sem medir o significados dos números, «esclarece os leitores» sobre o desemprego que «cai» em Agosto, sem dizer que esse mês de Verão a pino costuma, por obra e graça do trabalho sazonal, sempre por dar uma ideia falsa do número de desempregados. Entretanto, outros regozijam-se com a transferência do fundo de pensões da PT para o Estado, que vai ajudar a tapar o buraco. Com este tapado, o que será do fundo de pensões que passa a estar a cargo desse mesmo Estado? E que vai ser da Segurança Social quando, feitas as contas, se vir emagrecida dos milhares de milhões de euros que também vão enganar o défice?

 

O mealheiro

 

A história conta-se facilmente e desmascara a propaganda governamental. Como sempre, trata-se de uma autêntica fraude, como classificou Honório Novo, deputado do PCP. Instado a esclarecer qual a contribuição que a banca iria dar para «acabar com a crise» o Governo andou calado por muito tempo. Até que se descobriu que a banca não vai afinal pagar mais. Vai apenas descontar para «um mealheiro», uma espécie de depósito a prazo «para acudir a problemas» que a própria banca poderá vir a ter...

A medida não vai assim funcionar como criação de um novo imposto sobre a banca – é apenas «uma espécie de contribuição dos bancos para um fundo que só pode ser utilizados pelos próprios bancos»...

Leram isto nos jornais? Apostamos que não.



Mais artigos de: Argumentos

Uma hora com Quixote

No passado domingo voltei a ver e ouvir José Saramago. No ecrã do meu televisor, é claro, e não em qualquer programa da televisão portuguesa (que, quem sabe?, talvez se prepare para esquecer o nosso Nobel por longo tempo) mas sim num programa do canal História, distribuído...

As contas financeiras do divino rosário

No Vaticano nada se faz ao acaso, nada se improvisa. Sobretudo no seu bastião central, na área onde funciona o seu aparelho de governo universal, no seu «quadrado do poder». Aí, a disciplina é inflexível. Alegadamente, o esquema orgânico, adoptado uma vez por todas...

A crise qualitativa do dirigismo associativo

A crise do dirigismo desportivo popular, actualmente tão referida, possui contornos estranhos ou, no mínimo, contraditórios. Desde há várias décadas, talvez a partir do final da 2.ª Grande Guerra, que muitos afirmam que o dirigente desinteressado, eleito pela assembleia...