A crise qualitativa do dirigismo associativo
A crise do dirigismo desportivo popular, actualmente tão referida, possui contornos estranhos ou, no mínimo, contraditórios. Desde há várias décadas, talvez a partir do final da 2.ª Grande Guerra, que muitos afirmam que o dirigente desinteressado, eleito pela assembleia geral do clube, mais ou menos participada, para gerir os seus destinos, está condenado a desaparecer. No entanto, por toda a Europa, o número de clubes desportivos foi aumentando sempre, de forma não linear, mas constante. O que significa, não pode haver dúvidas, que o número de dirigentes aumentou proporcionalmente.
Mas, se esta situação constitui uma realidade indesmentível, como explicar então as sucessivas previsões catastróficas sobre o futuro do dirigismo desportivo? Será que os clubes actuais são os últimos a ser criados, por o associativismo ter alcançado a saturação e os seus dirigentes serem os sobreviventes de uma «raça» em vias de extinção?
Considere-se agora o problema por outro ângulo: ainda que imprecisos, os dados disponíveis indicam como sendo de 23% da população o número daqueles que se dedicam, de qualquer modo, à prática desportiva. Sabemos que esta percentagem é, se não a mais baixa, uma das duas mais baixas de toda a Europa. Basta dizer que o número de atletas federados (em todas as federações) em Portugal é de cerca de 450 mil (número francamente optimista), enquanto em França é de cerca de 13 milhões numa população total de 55 milhões. O que significa que, para se alcançar a paridade, Portugal, com 5,5 vezes menos população, teria que multiplicar aquele número por cinco!
Analisando ainda a questão a partir de um terceiro ângulo, pode ser que aqueles que ainda não praticam constituem a massa de potenciais praticantes, estruturante do futuro mercado de consumo das actividades físico-desportivas. Mas, tomando em consideração a estrutura sócio-económica da nossa sociedade, e as características sedentárias, herdadas de séculos de cultura, temos sérias reservas quanto à possibilidade de todos eles integrarem o processo de comercialização das práticas, pelo menos num horizonte temporal previsível.
A ser verdade o que se acaba de afirmar, isto significa que o número de clubes terá de continuar a aumentar se se desejar alcançar a real difusão da prática. Naturalmente que o número de dirigentes desportivos (benévolos e não benévolos) aumentará concomitantemente.
O que significa que a crise do dirigismo, em termos quantitativos, não existe. Mas se assim é, então a que se refere a «crise», pois que ela existe e é grave? É frequente a referência à falta de elementos para se construir uma direcção de um clube, a ameaça dos directores em exercício «entregarem» as chaves e o número de abandonos em diferentes momentos do mandato das direcções ser elevado.
A verdade é que não é possível isolar esta «crise» fechando-a sobre si própria. A crise é geral e passa, antes de tudo, nos elementos das camadas populares, pela crise no mundo do trabalho. E isto é fundamental que se tome em consideração na medida em que os valores determinantes e justificadores do associativismo são, em larga medida, comuns aos do trabalho: a necessidade de participar e intervir na definição de objectivos e processos de acção, a solidariedade que se deve manifestar entre os indivíduos, a vontade de progredir e melhorar as condições de vida, o exercício da justiça assente na igualdade de direitos tomando em consideração a desigualdade das situações, etc.
Por isso, o estado de espírito que caracteriza o dirigente desportivo voluntário do clube popular não é diferente daquele que caracteriza o trabalhador: inquietação quanto ao futuro, descrença no real valor das decisões políticas para a resolução dos problemas, e, acima de tido, falta de meios de toda a ordem. Por outro lado, uma das componentes da crise «interna» do próprio associativismo, radica na impregnação da visão dos próprios dirigentes do modelo desportivo hegemonicamente imposto pelas federações desportivas de carácter profissional mais ou menos marcado (só não é profissionalizada a federação que o não pode ser!). Esta visão arrasta-nos para a voragem do espectáculo desportivo profissional, impondo a cópia de modelos que nada têm a ver com a realidade em que se inserem os seus clubes.
É certo que alguns clubes escapam a esta «engrenagem», mas são precisamente os seus dirigentes que mais dificuldades encontram pela frente e sentem a maior incompreensão social e política para a execução dos seus projectos.
A crise do Dirigismo Desportivo Voluntário é, por isso, o resultado da acção conjugada de diferentes «crises», e passa também, pela própria «crise» do valor social com que o associativismo é entendido e interpretado pelo próprio Movimento Associativo. Alguns são levados a afirmar, por isso, que a crise do associativismo é, antes de mais, a «crise» na crença dos seus próprios valores.
A crise é, portanto, essencialmente de carácter qualitativo.