O desuso e o uso

Correia da Fonseca

Houve um tempo já remoto em que por cá já havia televisão e havia também, na chamada grande imprensa, textos que se aplicavam a avaliar a qualidade do quotidiano fluxo de TV que era fornecido ao domicílio. Era a crítica de televisão ou, pelo menos, o que o tentava ser. Usava-se. Não era um exercício fácil. Por um lado havia as limitações maiores ou menores de quem aceitara a tarefa. Por outro lado havia as censuras, oficiais e rudes até um certo ano, privadas e não menos brutas a partir de então. De qualquer modo, a prática ia sobrevivendo através de cortes imputáveis ao famigerado «lápis azul» ou não, de pressões, de despedimentos em casos mais graves. O objectivo assumido pela crítica de televisão era então o de se constituir, de facto quixotescamente, em voz de desmentido a eventuais imposturas que a TV veiculasse, denúncia de práticas televisivas estimulantes da ignorância auto-satisfeita e convencida, aviso à população quanto ao uso da TV como droga anestesiante e manipuladora. Era um projecto excessivamente optimista, porventura situado já nos domínios do irreal, mas que frequentemente era entendido e adoptado como cumprimento de um dever cívico que se queria indiferente à desproporção de impactos entre uma estação de TV e uma ou duas colunas num jornal de tiragem limitada e ilimitadas dificuldades. Eram vozes fiéis ao sagrado direito de recusar, de dizer «não!», de que uma vez Torga falou num breve poema cujas exactas palavras já não recordo. Era, enfim, difícil mas tendencialmente útil. Por vezes, era também uma quotidiana prova pública de coragem, e então justificava-se lembrar um antigo verso de Aragon: «Il est contagieux l’exemple du courage».

Durante anos, esse exemplo esteve presente nas páginas do Diário de Lisboa e, na verdade, contagiava. Mas não se pense nem se alegue que a prática dessa crítica de televisão era apenas, ou sequer sobretudo, ideológica e de mal ocultas intenções políticas: de facto, a desconstrução da mentira e a defesa da cultura têm raízes civilizacionais que se situam na primeira linha da sua justificação.


O maravilhoso reino


Essa crítica de televisão caiu em completo desuso: varrida das colunas da grande imprensa decerto por inoportuna se não por outras mais fortes razões, quando muito subsiste aqui ou ali, em órgãos corajosos da imprensa regional onde espera o seu fim como bicho em vias de total extinção. Na grande imprensa há um ou dois casos de crítica de TV bem documentada e bem escrita mas já não animada por motivações de ordem cívica, porventura trocadas estas por outros estímulos de enquadramento menos amplo. Mas o que está realmente em uso, verdadeiramente na moda, são textos que os incautos podem confundir com crítica no velho entendimento da palavra mas que de facto são desambiciosos registos do êxito dos diversos programas no plano das audiências obtidas e, por consequência, do seu possível valor comercial. Como bem se sabe e compreende, a conquista das audiências não depende em nada ou quase nada do mérito de cada programa, para mais perante teleplateias que são terreno longamente lavrado e adubado com populismos, demagogias, insignificâncias promovidas à condição de acontecimentos, factos relevantes reduzidos à situação de minúcias. Mas é à eficácia dos programas na chamada de públicos muito frequentemente basbaques, à luta miúda e de escassos pruridos deontológicos que as estações travam entre si no quadro dessa batalha de respiração negocista, que os comentários agora em uso se dedicam sem aparente remorso e, por vezes, sem o pudor que bem se justificaria. É que o leitor/telespectador pode deixar-se enganar, pode supor que uma tabela de audiências corresponde a uma tabela de méritos, que o que é bom para as finanças da estação é bom para a saúde mental do público. E perante esse provável equívoco, acrescentado à supressão de comentários avaliadores do mérito e da utilidade dos programas, revela-se o verdadeiro sentido da troca havida: o assassínio da televisão como factor de conhecimento e entendimento do mundo, a emergência de um imaginário pódio destinado a quem mais vende sem atender à qualidade do produto. É a consagração da entrada da TV, em estreita colaboração com alguma imprensa, no maravilhoso reino da mixordice. Ou, usando outra palavra: do crime.



Mais artigos de: Argumentos

O tempo das «tradições»

Notoriamente, vivemos o «tempo das tradições» na programação televisiva desta semana, decerto com a ajuda da «plena época estival» em que nos encontramos, um «tempo» onde os programadores, por sua vez, também parecem meter férias. Por...

<i>Contratos I</i>

Rui Pedro Soares, ex-administrador executivo da PT acusado de crime de corrupção passiva no chamado «caso Taguspark», solicitou agora ao TIC que requeira à PT uma cópia do contrato publicitário celebrado entre esta empresa e os Gato Fedorento para 2009 e 2010. Razão...

O escândalo como trampolim do poder…

As leituras que já aqui trouxemos do tema «Os Legionários de Cristo», divulgado pelo jornal espanhol El País, nem de longe esgotam o potencial de informação que fica disponível mas se oculta por detrás do texto impresso. Cada linha que se lê sugere...

Oh Sr. Doutor!!!

Para aqueles que se enriquecem com as coisas novas  Nunca a comida japonesa, e sobretudo o tão badalado sushi, foi para mim fonte de prazer. Talvez porque nunca o tenha comido bem feito e com bons ingredientes. O que comi eram rolinhos de arroz embrulhando pedacinhos de salmão e outros peixes de...