Das censuras e seus arredores

Correia da Fonseca
Quem, sendo telespectador, não o é apenas de telenovelas e similares, já decerto se apercebeu de que andam por aí grandes inquietações quanto à liberdade de expressão no nosso País. Não era costume que assim fosse, note-se: durante décadas as estações de televisão e outros meios de comunicação social davam-nos as notícias que bem entendiam, faziam portanto as suas escolhas, e quem diariamente encarava o ecrã do seu televisor não deparava com indícios de desconforto ou insatisfação em quem quer que fosse. Mas as coisas mudaram e, como é sabido, agora até a Assembleia da República se mobilizou para apurar ao certo o que se passa com a liberdade de expressão reconquistada em 74. Parece que tudo começou quando, na sequência da extinção do Jornal de Sexta da TVI, Manuela Moura Guedes adoeceu, continuando aliás de baixa médica, o que decerto significa que ainda não está nada bem. Terá começado então a perceber-se que era capaz de haver censura em Portugal, e censura numa estação privada, isto é, independente, verdadeiramente livre. É certo que há muito tempo PSD e PS se acusavam mutuamente de instrumentalizarem a seu favor a RTP, estação pública, conforme um ou outro partido estava no poder. Então, porém, ninguém parecia ralar-se muito com as acusações. Talvez em primeiro lugar, porque há muito que o chamado cidadão comum deixou de levar a sério o que qualquer daqueles dois partidos diz. Em segundo lugar porque grande parte das gentes já se conformou com o que regularmente lhe vem sendo repetido: que só nos órgãos de comunicação social privados há independência e liberdade. Há-de ser por isso que regularmente é reivindicada a privatização da RTP: há quem suspeite de que tais pressões são manifestações do velho e insaciável ódio da direita ao sector empresarial do Estado ou que correspondem a ambições privadas sobre um importante órgão de comunicação social, mas afinal devem ser apenas a afirmação de um imperativo patriótico na defesa da liberdade de expressão. Lá e cá Entretanto havia, é certo, aquela pequenina questão consubstanciada na dificuldade extrema em encontrar jornalistas de conhecidas convicções de esquerda com funções relevantes ou simplesmente interessantes num grande órgão de comunicação social. Não se tratará aí, é claro, de um tipo de censura literalmente radical, isto é, daquela que corta o mal pela raiz, mas sim, decerto, de uma precaução imposta pelo facto de jornalista de esquerda não ter, no alto entendimento de quem decide, perfil adequado ao verdadeiro pluralismo, como se sabe muito exigente nessa matéria, pelo que o melhor é que gente dessa nem sequer entre nas redacções. Afora isso, mantém-se generalizada e provavelmente dominante uma espécie de critério de ouro: a comunicação social privada é o território da liberdade de expressão sem censuras nem constrangimentos. Ora, foi neste clima de quase consensualizado convencimento que, como se compreende, não é exclusivo português e de facto se alarga a toda a civilização euroatlântica, que surgiu há dias na revista francesa «Télérama», especializada em media como aliás o seu próprio título indica, um extenso artigo do jornalista Olivier Milot que vem demonstrar precisamente o contrário: que as pressões governamentais nos canais públicos que resultam em práticas censórias existem, mas são pontuais, ao passo que a censura exercida internamente nos canais privados em obediência a interesses comerciais e financeiros é permanente e constitui mesmo uma espécie de lei interna. É, segundo Milot, o que ocorre em França; e bem se vê que seria interessante poder saber se em Portugal é diferente. O dado fundamental será, naturalmente, que lá como cá é a mesma a classe politicamente dominante no Estado e na chamada «sociedade civil». Mas haverá um outro factor a não esquecer: o de que nas duas sociedades, embora porventura com desigual força na consciência pública, resiste a percepção de que o que é público, do Estado, é de todos os cidadãos (que portanto têm o direito de exigir certos méritos e virtudes elementares dos diversos organismos que integram o sector), ao passo que o privado está em princípio e «legalmente» entregue à vontade e aos interesses dos seus donos sem que mais ninguém pareça ter nada com isso. Sob condição do cumprimento das leis do País, é certo. Sabendo-se contudo que quanto às leis sempre haverá quem saiba dar um jeito.


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