Os pássaros ausentes

Correia da Fonseca
A RTP terá achado que o seu Festival 2010 da Canção foi um excelente espectáculo de televisão, e por isso resolveu presentear-nos no passado domingo com os seus chamados «melhores momentos». Conformemo-nos, que isto de ser telespectador exige, além do mais, muita paciência. Porém, é certo que a repetição parcial do evento, que foi aquilo que todos puderam ver e ouvir e de resto não se afastou do que era esperável, teve pelo menos um momento excelente: quando se ouviu, na voz de um Fernando Tordo atafulhado das suas e nossas saudades, um verso de Ary: «cantar é ser um pássaro de esperança». Eram palavras marcadas pelo génio simultaneamente robusto e delicado de Ary dos Santos, a exercerem ali uma função de implícita denúncia decerto não prevista pelo poeta quando as escreveu: é que dos cantos ouvidos naquela noite no contexto do Festival nenhum sequer se aproximou de um itinerário de esperança. E quanto a pássaros que a cantassem, à esperança, também ali não se deu por nenhum. Passaram por lá alguns passarinhos, é de admitir que por lá esvoaçassem alguns passarões, mas uns e outros eram aves de uma fauna bem diferente da evocada por Ary dos Santos no seu belíssimo poema. E esse facto suscitava naturalmente algumas melancólicas reflexões a quem fosse dado a reflectir por inclinação pessoal ou até por alguma espécie de dever de ofício. Reflexões que porventura poderão conter-se na verificação de que, de Ary a esta parte dos tempos, desapareceram os cantores para quem o canto é afirmação de esperança e subjacente certeza da sua razão, salvo porventura um ou outro sobrevivente que se arrisca a manter-se, aliás corajosamente, sob o risco de uma aparente obsolescência. Dividir para calar Esta não é uma questão nova para quem vai sabendo da vida e do País sobretudo através do que o seu televisor diariamente lhe vem contando, mas nem a circunstância de essa ser uma abordagem apenas parcial dissolve o grão de inquietação e de estranheza por ela gerado. Poder-se-á pensar, e não sem bons motivos para isso, que a própria televisão portuguesa (e não apenas a RTP, não obstante as suas responsabilidades específicas) se aplica a enxotar dos seus ramos os «pássaros de esperança» que se atrevam a tentar pousar nas suas antenas. Na verdade, porém, não nos chegam notícias de que esse canto desaparecido da TV se faça ouvir noutros lados. É como se não houvesse hoje nem motivos para o canto nem razões para a esperança e, contudo, bem se sabe que não é assim. Deste conjunto de verificações resultaria uma espécie de mistério se não soubéssemos de outros factores. Se não soubéssemos que sobre a generalidade das gentes sopram hoje ventos de grande capacidade analgésica, que se multiplicam as ofertas para outros caminhos muito atraentes, que as esperanças hoje faladas e até muito semeadas são esperançazinhas de via estreita para uso estritamente individual, pessoais e intransmissíveis. É sabido que desde tempos remotos a regra de dividir para reinar faz parte dos métodos de qualquer tipo de opressão. Agora, porém temos a oportunidade de aprender que dividir também serve bem para calar não necessariamente todo o som mas sim, de um modo selectivo, o canto que exprima esperanças comuns, partilhadas, colectivas. O próprio aparelho da produção musical, digamos assim, favorece um certo tipo de som, mais atroador que expressivo, mais dirigido aos nervos que à razão, e também esse factor conta porque o racional é mais facilmente susceptível de partilha com consequências. E para lá de tudo isto (mais rigoroso seria talvez dizer que para cá de tudo isto) ocorre o generalizado estímulo à mediocridade ao abrigo da tácita invocação de que o medíocre, por supostamente ser descomplicado, é que é comercial, rentável, portanto aconselhável. O resultado desse clima tem estado à vista e ao ouvido de todos nos mais recentes Festivais da Canção da RTP. Há ainda quem diga que são uma vergonha. Há quem já não se importe.


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