A droga em relevo

Correia da Fonseca
Foi a Euronews que, um dia destes, veio falar-me do assunto. A mim e a milhares de outros, é claro. Veio falar-me das extraordinárias mutações que se avizinham, em vários planos, na área da televisão e, naturalmente, dos televisores. Vai ser óptimo. A televisão propriamente dita, se é que esta expressão ainda continua a ter cabimento, vai multiplicar-se em novas habilidades e novos caminhos. Quanto aos televisores, não só vão continuar a crescer mas também irão proporcionar-nos imagens de qualidades e características sempre melhores. Inclusivamente, as imagens em relevo já estão aí, ao que parece, ao virar da próxima esquina do tempo. E esta nova etapa do progresso técnico perturbou-me profundamente, direi mesmo que me excitou. Deu-me para imaginar o que será o visionamento das figuras de certas personagens de presença recorrente na TV, mas então em relevo. Lembre-se cada qual de quem prefira, mas parece-me que vai ser muito bom. Não vai ser aí, contudo, que o anunciado progresso tecnológico mais vai marcar nos tempos que se aproximam a relação previsivelmente apaixonada entre a televisão e o telespectador, o agravamento da teledependência que já existe há décadas, que consta ter-se atenuado no que se refere sobretudo às camadas mais jovens das teleplateias, mas que poderá ser recuperado pelas anunciadas inovações com destaque para o relevo. Imagine-se uma infindável lenga-lenga como os «Morangos» da TVI, mas em relevo. Ou uma típica telenovela brasileira, povoada como é costume, mas em relevo. Ou o José Rodrigues dos Santos a sublinhar uma notícia com a caneta apontada na nossa direcção, mas em relevo. Ou a Manuela Moura Guedes a depor na Comissão Parlamentar de Ética. Em relevo. Ninguém duvidará decerto que tudo isto e muito mais vai ser de arrasar. «O corpo pela alma» Porém, para os que desde sempre encararam a televisão como qualquer coisa mais que uma forma de embalar a estreiteza de horizontes, os prometidos avanços tecnológicos vêm recolocar uma velha questão: a de se saber se não vêm apenas reforçar as capacidades de anestesia da TV. Não se duvida de que as imagens serão mais apetitosas, mas para a suposta caturrice dos exigentes, dos que sempre perguntam o que está sob a provável sedução das aparências, a interrogação que se mantém e até se reforça é a que pergunta para quê e em favor de quem essa acrescida eficácia vai servir. Mesmo em termos apenas estéticos, que serão ou não os mais importantes, a dúvida é, mais que legítima, necessária. Tentemos uma exemplificação: já hoje, sem o anunciado relevo mas a cores, uma cançonetistazinha medíocre, dessas que levantam os braços parecendo que cantam sobretudo com as axilas, não vale mais que um Paulo de Carvalho a cantar num ecrã a preto-e-branco. E, como decerto se entende, escolhi uma exemplificação ligeira, que pouco ou nada suscita em matéria de implicações mais graves. Subindo um pouco nessa escala, porém, direi que uma criminosa mentira debitada a cores e em relevo não deixa de ser uma infâmia, ao passo que a desmontagem de uma impostura na TV será sempre boa televisão por mais preto-e-branco que seja o ecrã. Isto quanto às cores, com a fácil lição obviamente transportável para o relevo que se anuncia a caminho, que estará mesmo quase aí a chegar. É a conhecida receita da camuflagem, o antiquíssimo engodo das missangas coloridas para ludibriar ingenuidades; é o uso das aparências, das formas sedutoras, para contrabandear aldrabices ou venenos. Ou, como se dirá lembrando palavras que há uns anos Abrunhosa cantou, o convite a que se aceite «o corpo pela alma». Esse é o progresso que agora nos é anunciado em matéria de televisão e televisores: a possibilidade, o risco, do fornecimento da droga do costume, mas agora em relevo. Uma coisa sendo certa: ninguém poderá alegar que não foi avisado pela experiência anterior.


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