Terramoto e ocupação

Jorge Cadima

O significado da ocupação militar, a pretexto da tragédia, extravasa as fronteiras

O terramoto do Haiti ocorreu na terça-feira, 12 de Janeiro. Em 24 horas, os militares dos EUA haviam «tomado controlo» do aeroporto da capital (BBC, 18.1.10). Numa semana os EUA transportaram 9 a 10 mil soldados para o Haiti e «o Pentágono prepara-se para enviar mais» (New York Times, 17/1). O Canadá vai enviar mais mil soldados (Financial Times, 17/1). Mas a solidariedade internacional quase não saiu do aeroporto de Port-au-Prince: 5 dias após o sismo «a ONU diz que alimentou 8 mil pessoas, mas 2 a 3 milhões continuam desesperadamente necessitadas» (NYT, 17/1). Ainda o NYT explica: «O Programa Alimentar Mundial (WFP) conseguiu finalmente fazer aterrar voos com comida, medicamentos e água no sábado, depois de tentativas goradas na quinta e sexta-feira, afirmou um funcionário dessa agência. Esses voos foram desviados para que os Estados Unidos pudessem aterrar tropas e equipamento, e transportar americanos e outros estrangeiros para [destinos] seguros. «Há 200 voos a chegar e partir todos os dias, o que é uma quantidade incrível para um país como o Haiti» disse Jarry Emmanuel, o funcionário logístico de transportes aéreos da operação haitiana da agência [WFP]. «Mas a maioria desses voos são para os militares dos Estados Unidos». Acrescentou: «As prioridades deles são garantir o controlo do país. As nossas são dar de comer». A BBC (18/1) informa que «várias agências protestaram pelo facto de não conseguirem fazer chegar auxílio através do aeroporto», mas a família Clinton e a sua corte de jornalistas passam por lá à vontade. «A França e o Brasil apresentaram protestos oficiais porque os militares dos EUA que controlam o aeroporto negaram autorização de aterragem a voos de auxílio dos seus países» (AP, 17/1), incluindo um avião francês com um hospital móvel. Idêntico protesto veio da organização dos países das Caraíbas (CARICOM) e da Nicarágua (cubadebate, 17/1). O embaixador de França no Haiti declarou que «o aeroporto não está à disposição da comunidade internacional, transformou-se num apêndice de Washington» (Il Messaggero, 17/1). O Secretário de Estado francês para a Cooperação Alain Joyandet, pediu à ONU para definir o papel dos EUA: «trata-se de ajudar o Haiti, não de ocupar o Haiti» (Xinhua, 18/1).

Nos últimos dias repete-se que o Haiti «já não tinha Estado» antes do terramoto. Mas a comunicação social de regime pouco falou da história do Haiti no Século XX: uma história de ocupação pelos EUA (1915-34), feroz ditadura pró-americana da família Duvalier e os seus facínoras «Tontons-Macoute» (1957-86), golpes e invasões patrocinadas pelos EUA e França. Por duas vezes nos últimos 20 anos o Presidente Aristide, eleito por esmagadoras maiorias, foi derrubado em golpes de Estado inspirados em Washington. Em 2004, Aristide, tal como o Presidente hondurenho Zelaya, foi metido num avião e exilado. O próprio contou (entrevista à jornalista Amy Goodman, democracynow) que foram militares e membros da embaixada dos EUA no Haiti que o raptaram na noite de 28-29 de Fevereiro, sob o pretexto de garantir a sua segurança. Logo no dia 29, o Conselho de Segurança da ONU «tomou nota da demissão» de Aristide e aprovou o envio duma missão militar (resolução 1529), tendo os Marines dos EUA chegado ao país antes do anoitecer (Wikipedia, «2004 Haiti rebellion»). Como nas Honduras, o «quarto poder» do grande capital optou por um silêncio conivente. O papel da missão militar da ONU é relatado num filme disponível em globalresearch (item 16998).

A atitude do gigante imperialista vizinho do Haiti é coerente com a sua História. Mas o significado da ocupação militar, a pretexto da tragédia, extravasa as fronteiras daquele martirizado país. Integra-se no cerco militar que os EUA estão a montar à Venezuela e a Cuba, com as novas bases militares na Colômbia, as provocações aéreas a partir da colónia holandesa de Curaçao, o reforço da presença militar no Panamá, a recente inclusão de Cuba na lista de «países promotores do terrorismo». É cada vez mais evidente a opção dos EUA por uma solução militar de largo espectro para a profundíssima crise em que estão atolados. Do Afeganistão e Paquistão, do Iémen à América Latina, quem conseguir descobrir diferenças entre Obama e Bush que avise.


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