Lilian e Rossana

Correia da Fonseca
Ao longo dos dias recentes, a televisão veio trazendo imagens da catástrofe que se abateu sobre Port-au-Prince, e apesar do seu habitual gosto por impor-nos imagens ditas agressivas, bem se pode dizer que desta vez nos poupou um pouco. Vieram, é claro, imagens de muitos feridos, de semi-soterrados, de alguns cadáveres, como aliás não poderia deixar de ser, mas dir-se-ia que a própria dimensão da tragédia impôs alguma contenção às reportagens como que em involuntário sinal de algum respeito. Quanto a outros aspectos da desgraça, digamos que de um ou de outro modo complementares, têm as reportagens sido mais discretas: dizem-nos que o país é pobre mas não nos explicam porquê, falam-nos da escravatura que esteve na sua raiz mas não nos das forças que assim o têm mantido, aludem ao que já se percebeu ser um autoritarismo excessivo na intervenção «humanitária» dos Estados Unidos mas nem se assomam ao limiar de uma interpretação desse facto. É verdade que por agora é o horror que se constitui em esmagadora tónica do acontecimento, mas será bom que não nos esqueçamos, pelo menos nos dias próximos, de conhecer e compreender o antes e o depois. E que a TV, honesta e diligente, nos ajude nessa tarefa indispensável. Porque sempre, como se diria parafraseando um pouco Buarque, entender é preciso, simplesmente aceitar não é preciso.

Estória no meio de pavor

Entretanto, uma estória verdadeira foi-nos contada pela reportagem da Euronews e, embora minúscula no interior de tudo quanto se sabe e se viu, talvez valha a pena guardá-la e eventualmente reflectir sobre ela. Era uma vez uma haitiana chamada Lilian que emigrara para os Estados Unidos como milhares de outros e por lá vivia menos mal quando lhe chegou a notícia do terramoto em Port-au-Prince e da enorme dimensão que o sismo tivera. Logo a angústia a tomou: a tia, a Tia Rossana, que lhe teria acontecido, como poderia salvá-la?! A Tia Rossana já tinha oitenta e sete anos, vivia sozinha e ainda com energia bastante para tratar de si, mas no meio do inferno em que a cidade se convertera não poderia sobreviver por si só e sem um apoio estava condenada a morrer porventura em circunstâncias atrozes. Lilian não terá hesitado: creio que acompanhada por um filho voou para o Haiti, conseguiu o desembarque que as circunstâncias haviam tornado quase impossível, buscou Rossana no lugar que ela habitava, encontrou-a, abraçou-a como quem abraça um náufrago negado ao naufrágio, colocou-a no caminho da sobrevivência que parecia improvável. Era um pormenor quase incrivelmente feliz entalhado num gigantesco painel de fundo negro pintado a sangue e sonorizado com uivos humanos, mas era um pormenor luminoso. Que não há-de servir para que entrincheirados nele recusemos o resto, mas sim para que nos ajude a encarar o conjunto dos factos, a suportá-los, a pensá-los.

Ser velho noutros lugares

Por mim, a estória contada pela Euronews levou-me a reflectir sobre o comportamento de Lilian, haitiana de idade madura, perante a velha Rossana e o óbvio perigo que a rondava se é que não a vitimara já. Perdoe-se-me que uma vez mais pessoalize parcialmente o que nesta dupla coluna fica escrito, mas é claro que por vezes a nossa experiência pessoal fornece contributos que não apetece recusar. Neste caso, fiquei a pensar, com razão ou sem ela, que a angustiada dedicação de que Lilian deu provas para com Rossana é característica de gente com vida difícil, que já partilhou muitas tristezas, talvez algumas misérias, e que por saber quanto custa a vida respeita especialmente quem já muito viveu. De onde, talvez, o respeito pelos velhos que subsiste em algumas sociedades mas não já no Ocidente supostamente civilizado e desenvolvido. Já agora, arrisco-me a lembrar que quando há vinte anos, integrado num grupo de jornalistas vindos de diversos lugares do mundo, visitei durante um mês a Coreia do Norte e percorri uma boa parte do país, fiquei quase chocado pelo facto de, sendo eu o menos jovem do grupo embora ainda em óptimo estado, ser objecto de grandes atenções e cuidados por parte dos anfitriões. É que eu era, de todos, o mais «velho». Estou convencido de que não seria assim tratado, discriminado positivamente em atenção aos primeiros cabelos brancos, se viajasse por europas e arredores. E peço desculpa se a aflita viagem de Lilian em busca de Rossana me lembrou os anfitriões de Pyong Yang. É capaz de não ser memória que caia muito bem, mas o caso é que não gosto de ser ingrato.


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