Enfrentar a repressão
Há 40 anos, mais precisamente no dia 31 de Dezembro de 1969, nascia a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, que desempenhou um papel fundamental na denúncia da repressão fascista e no apoio às famílias dos antifascistas presos.
Na longa e tenaz resistência do povo português contra o fascismo há episódios, organizações ou personagens que não viram ainda devidamente reconhecido o seu papel no derrube da ditadura e na construção do Portugal democrático. A Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) é, seguramente, um destes casos.
Não será difícil imaginar as dificuldades colocadas a um grupo de cidadãos portugueses que pretendiam criar, nas condições que se vivia no Portugal fascista, um organismo que tinha como função assumida a defesa dos presos políticos, a denúncia das arbitrariedades e da repressão, as medidas criminosas a que os presos eram submetidos e o apoio às suas famílias. A sua criação e actividade constituíram iniciativas de grande audácia e coragem política e pessoal.
Criada pelo aproveitamento inteligente de uma brecha legal – o artigo 199.º do Código Civil, que reconhecia a possibilidade de existirem «comissões constituídas para realizar qualquer plano de socorro ou beneficência» –, a Comissão de Socorro ganhou rapidamente largos apoios na sociedade portuguesa de então. Personalidades oriundas de diferentes sectores sociais e profissionais e áreas geográficas que, corajosamente, deram a cara pela Comissão, pelas suas posições e actividades, muitas vezes perante as próprias autoridades do Estado – do Presidente da República e Presidente do Conselho à própria PIDE, então já «extinta» e substituída pela Direcção-Geral de Segurança (DGS), em tudo semelhante à sua antecessora.
Sem a abrangência que acabou por assumir, não teria sido possível à Comissão resistir às perseguições e arbitrariedades contra si movidas e continuar a sua actividade até à madrugada libertadora de 25 de Abril de 1974, para a qual deu também um valioso contributo. Essencial para a sua sobrevivência foi também o apoio que mereceu por parte de organizações e órgãos de informação internacionais.
Durante estes anos, a CNSPP editou 23 circulares informativas, nas quais dava a conhecer à opinião pública nacional e internacional a actividade repressiva do Estado, exercida pelos seus órgãos policiais e judiciais, com especial destaque para a PIDE/DGS e os tribunais plenários.
Nos dias como aqueles em que vivemos, marcados pelo branqueamento do fascismo e pelo apagamento da resistência, é essencial que se conheça e valorize o que foi mais esta frente de luta aberta contra a ditadura, que tanta coragem e determinação necessitou para realizar a sua abnegada acção. A seguir ao 25 de Abril, a CNSPP não se extinguiu, dando lugar a uma outra organização, a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP).
Dignidade ante a barbárie
Numa carta enviada ao Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, no dia 15 de Dezembro de 1969, em que se dá conta da intenção de criar a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, expunham-se os objectivos da Comissão e chamava-se a atenção para a «gravidade da situação referente aos presos políticos» e propunham-se as seguintes medidas: «a) revogação da legislação que atribui a entidades administrativas ou policiais competência para a instrução de processos criminais, por forma a que esta instrução fique a cargo exclusivo de juízes integrados em tribunais, de acordo com a Constituição; b) redução do processo penal especial político ao processo penal comum, com a consequente revogação imediata de todas as leis especiais que a isso se opunham; c) abolição das medidas de segurança aplicáveis aos presos políticos; d) realização de um inquérito em termos de estrita imparcialidade, às condições de vida dos presos políticos nos diferentes estabelecimentos; e) libertação de todos os presos políticos e sua reintegração na vida da comunidade nacional, como reparação devida às vítimas de uma legislação injusta e condição prévia e indispensável para o saneamento da vida política do País.» Assinaram esta carta, em nome de várias dezenas de personalidades, Luís Lindley Cintra, Manuela Bernardino e Fernando de Abranches Ferrão.
No dia 20 de Janeiro do ano seguinte, veria a luz do dia o primeiro comunicado público da recém-criada Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Nesse texto, lembrava-se que «passado mais de um ano sobre a posse do novo Presidente do Conselho, que tinha anunciado querer tornar possível a convivência entre todos os portugueses sem ódios nem malquerenças, não foram ainda revogadas as leis de excepção da PIDE (agora DGS) e dos tribunais especiais, não se proclamou ainda uma total amnistia para os presos e detidos políticos, não se corrigiram sequer situações clamorosas que correspondem na prática à destruição física e moral dos presos políticos».
A Comissão, escrevia-se ainda nesse comunicado, pretendia «congregar os portugueses responsáveis e conscientes para que se torne impossível a continuação de uma situação – contrária ao Direito, à Moral e até à Constituição vigente – pela qual tantos portugueses por simples delito de opinião, ou por obediência a princípios que consideram superiores, têm sido ou estão sujeitos a serem: presos arbitrariamente, sem possibilidade efectiva de defesa; tratados injustamente e desumanamente nos vários estabelecimentos prisionais; submetidos a tribunais e legislação especial, em condições manifestamente contrárias aos preceitos constitucionais; sujeitos à prisão praticamente perpétua através de arbitrárias medidas de segurança.»
Nesse mesmo texto, a Comissão apelava aos portugueses para que secundassem, apoiassem e multiplicassem a sua «acção solidária», «fazendo convergir para a Comissão elementos informativos e meios de auxílio, colaborando nas tarefas das comissões especializadas e constituindo núcleos regionais e locais de apoio».
Não será difícil imaginar as dificuldades colocadas a um grupo de cidadãos portugueses que pretendiam criar, nas condições que se vivia no Portugal fascista, um organismo que tinha como função assumida a defesa dos presos políticos, a denúncia das arbitrariedades e da repressão, as medidas criminosas a que os presos eram submetidos e o apoio às suas famílias. A sua criação e actividade constituíram iniciativas de grande audácia e coragem política e pessoal.
Criada pelo aproveitamento inteligente de uma brecha legal – o artigo 199.º do Código Civil, que reconhecia a possibilidade de existirem «comissões constituídas para realizar qualquer plano de socorro ou beneficência» –, a Comissão de Socorro ganhou rapidamente largos apoios na sociedade portuguesa de então. Personalidades oriundas de diferentes sectores sociais e profissionais e áreas geográficas que, corajosamente, deram a cara pela Comissão, pelas suas posições e actividades, muitas vezes perante as próprias autoridades do Estado – do Presidente da República e Presidente do Conselho à própria PIDE, então já «extinta» e substituída pela Direcção-Geral de Segurança (DGS), em tudo semelhante à sua antecessora.
Sem a abrangência que acabou por assumir, não teria sido possível à Comissão resistir às perseguições e arbitrariedades contra si movidas e continuar a sua actividade até à madrugada libertadora de 25 de Abril de 1974, para a qual deu também um valioso contributo. Essencial para a sua sobrevivência foi também o apoio que mereceu por parte de organizações e órgãos de informação internacionais.
Durante estes anos, a CNSPP editou 23 circulares informativas, nas quais dava a conhecer à opinião pública nacional e internacional a actividade repressiva do Estado, exercida pelos seus órgãos policiais e judiciais, com especial destaque para a PIDE/DGS e os tribunais plenários.
Nos dias como aqueles em que vivemos, marcados pelo branqueamento do fascismo e pelo apagamento da resistência, é essencial que se conheça e valorize o que foi mais esta frente de luta aberta contra a ditadura, que tanta coragem e determinação necessitou para realizar a sua abnegada acção. A seguir ao 25 de Abril, a CNSPP não se extinguiu, dando lugar a uma outra organização, a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP).
Dignidade ante a barbárie
Numa carta enviada ao Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, no dia 15 de Dezembro de 1969, em que se dá conta da intenção de criar a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, expunham-se os objectivos da Comissão e chamava-se a atenção para a «gravidade da situação referente aos presos políticos» e propunham-se as seguintes medidas: «a) revogação da legislação que atribui a entidades administrativas ou policiais competência para a instrução de processos criminais, por forma a que esta instrução fique a cargo exclusivo de juízes integrados em tribunais, de acordo com a Constituição; b) redução do processo penal especial político ao processo penal comum, com a consequente revogação imediata de todas as leis especiais que a isso se opunham; c) abolição das medidas de segurança aplicáveis aos presos políticos; d) realização de um inquérito em termos de estrita imparcialidade, às condições de vida dos presos políticos nos diferentes estabelecimentos; e) libertação de todos os presos políticos e sua reintegração na vida da comunidade nacional, como reparação devida às vítimas de uma legislação injusta e condição prévia e indispensável para o saneamento da vida política do País.» Assinaram esta carta, em nome de várias dezenas de personalidades, Luís Lindley Cintra, Manuela Bernardino e Fernando de Abranches Ferrão.
No dia 20 de Janeiro do ano seguinte, veria a luz do dia o primeiro comunicado público da recém-criada Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Nesse texto, lembrava-se que «passado mais de um ano sobre a posse do novo Presidente do Conselho, que tinha anunciado querer tornar possível a convivência entre todos os portugueses sem ódios nem malquerenças, não foram ainda revogadas as leis de excepção da PIDE (agora DGS) e dos tribunais especiais, não se proclamou ainda uma total amnistia para os presos e detidos políticos, não se corrigiram sequer situações clamorosas que correspondem na prática à destruição física e moral dos presos políticos».
A Comissão, escrevia-se ainda nesse comunicado, pretendia «congregar os portugueses responsáveis e conscientes para que se torne impossível a continuação de uma situação – contrária ao Direito, à Moral e até à Constituição vigente – pela qual tantos portugueses por simples delito de opinião, ou por obediência a princípios que consideram superiores, têm sido ou estão sujeitos a serem: presos arbitrariamente, sem possibilidade efectiva de defesa; tratados injustamente e desumanamente nos vários estabelecimentos prisionais; submetidos a tribunais e legislação especial, em condições manifestamente contrárias aos preceitos constitucionais; sujeitos à prisão praticamente perpétua através de arbitrárias medidas de segurança.»
Nesse mesmo texto, a Comissão apelava aos portugueses para que secundassem, apoiassem e multiplicassem a sua «acção solidária», «fazendo convergir para a Comissão elementos informativos e meios de auxílio, colaborando nas tarefas das comissões especializadas e constituindo núcleos regionais e locais de apoio».