Retratos de Cunhal
Na apresenção do livro Retratos de Álvaro Cunhal, das Edições Afrontamento, participaram Jerónimo de Sousa e António Borges Coelho, cujas intervenções a seguir transcrevemos.
Jerónimo de Sousa
Fomos convidados para produzir uma intervenção a pretexto desta obra da iniciativa da «Afrontamento» e da «Modo de Ler», concretizada pelo empenhamento particular do amigo Cruz Santos titulada de Retratos de Álvaro Cunhal.
Tal como não há traço de pintor, ângulo de fotógrafo, poema ou depoimento com dimensão e conteúdo suficientes para acolher a singularidade política, ética, intelectual, artística e humana de Álvaro Cunhal, também esta intervenção não será bastante.
Porque a dimensão dada pelo olhar sob uma qualquer vertente, nunca está completa, antes carece de outras de que é indissociável.
Mas há um ponto de partida que podemos ter. A sua obra tanto política como artística é intrínseca à sua opção política a que dedicou a vida inteira e a vida toda, a partir do momento em que integrou as fileiras do Partido Comunista Português, como militante e dirigente. Vivendo um período histórico de grande intensidade e com transformações fantásticas desde a Revolução de Outubro à Revolução de Abril, a derrota do nazi-fascismo, a rupturas e mudanças, a avanços e recuos dos trabalhadores e dos povos, temperou a sua grande inteligência com o conhecimento que levou à produção de uma obra teórica notável, também ela inseparável da sua acção prática de organizador e dirigente comunista que encontrava nos anseios, na luta dos trabalhadores e dos povos, fonte de experiência para a abordagem da História portuguesa do século XX e uma contribuição audaciosa para o desenvolvimento criativo das ideias de Marx, Engels e Lénine. Anseios, lutas dos trabalhadores e dos povos que, tal como a luta corajosa dos seus camaradas, lhe serviram de inspiração para criar as personagens dos seus romances e desenhos. Inevitavelmente tornou-se uma ameaça para os detentores e torcionários do regime fascista.
E foi por isso que estando preso durante 12 anos, foi sujeito a oito anos de rigoroso isolamento onde mais do que a morte física se pretendeu a morte da sua inteligência e das suas capacidades intelectuais. É nestas duras circunstâncias que Álvaro Cunhal revelou não só a coragem física mas a sua inabalável superioridade moral e psicológica, assumindo-se não como prisioneiro humilhado e torturado mas como um combatente para servir a sua causa e ideal.
Durante 14 meses, atirado para um cárcere sem sol que o bafejasse, sem visitas solidárias, sem papel ou lápis que fosse, foi mentalmente construindo a sua defesa ante o tribunal plenário, defesa que acabou por se traduzir numa peça exemplar que fascinou e deu ânimo a todos os que lutaram contra o fascismo. De acusado a acusador, sem se dirigir aos juízes dependentes do poder político, partindo do enquadramento do papel do movimento comunista internacional e da análise da situação política portuguesa, rematou sabendo o que o esperava em termos de sentença: eram os então governantes e o seu chefe Salazar, quem deveria sentar-se no banco dos réus, por agirem contra os interesses do povo e do país, por quererem arrastar Portugal para uma guerra criminosa, por empregarem métodos inconstitucionais, ilegais e terroristas.
Na prisão, de uma forma intensa, dedica-se à leitura e ao estudo. É aí que faz a tese pioneira sobre «O Aborto», dá Contribuição ao estudo da questão agrária, escreve Até amanhã camaradas, traduz o Rei Lear, reflecte e escreve sobre Darwin, adianta o estudo sobre As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, faz desenhos e pinta.
E, mesmo com esta intensíssima reflexão, criação e elaboração intelectuais, manteve uma luta tenaz pelos seus direitos de preso político escrevendo ao director da prisão, e nunca perdendo o contacto com a Direcção do Partido, contornando a vigilância policial e prisional.
Passando da Penitenciária de Lisboa para a Fortaleza de Peniche, aí dá continuidade à reflexão própria sobre questões relativas à arte e à estética, escreve as Cinco notas sobre a forma e conteúdo no seguimento da anterior polémica com José Régio, reflexão prosseguida posteriormente no Prefácio ao Romance Quando os Lobos Uivam, de Aquilino Ribeiro.
Tema apaixonante que haveria de referenciar e retomar depois do 25 de Abril, na 1.ª Assembleia do sector de artes e letras da Organização Regional de Lisboa, em que manifesta a defesa de uma arte socialmente comprometida inseparável dos fenómenos da criação artística, conducente à ideia forte da desejável intervenção do artista com a sua arte ao lado dos trabalhadores, do povo, dos mais fracos, mas sem subordinação a qualquer escola ou tendência estética.
A célebre fuga da Fortaleza de Peniche, organizada pelo Partido, que constituiu um abalo para o regime fascista, levou Álvaro Cunhal de novo à luta clandestina, ao reforço da organização do Partido e consequentemente a uma ímpar produção teórica que comporta trabalhos como, entre outros A tendência anarco-liberal na organização do trabalho de Direcção, O desvio de direita dos anos 1956-1959, matérias aliás desenvolvidas no notável e histórico Rumo à Vitória onde para além da caracterização da situação política portuguesa, da situação económica e social, da natureza de classe da ditadura fascista, define os objectivos da revolução democrática e nacional, o derrubamento do fascismo e a política de alianças sociais. Obra notável pela profundidade da análise e clareza de objectivos que, produzida 10 anos antes da revolução de Abril, afirma a dado passo: «chegará o dia em que as forças armadas deixarão de ser um eficiente apoio de Salazar e se tornarão em parte considerável uma arma da revolução democrática e nacional. Canhões, tanques, aviões, metralhadoras, espingardas deixarão de voltar-se contra o povo e, ao lado do povo voltar-se-ão, nesse dia, contra o próprio Governo».
Depois de Abril - que ele considerou o acto mais moderno e avançado da nossa época contemporânea, o período mais realizador da História do Partido – a par da intensa intervenção política na vida do Partido, não parou a sua genial capacidade de produzir, reflectindo, elaborando, teorizando sobre a realidade que se manifesta nas suas obras sobre a revolução: A Revolução Portuguesa – o passado e o futuro, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contra-revolução confessa-se).
No plano político e partidário demonstrando o papel insubstituível do PCP na transformação da sociedade, na necessidade do seu reforço, registando experiências, assinalando erros e acertos, avanços e recuos, reflectindo, ouvindo, ouvindo muito, produz obras de grande actualidade que vão para além do Partido, como por exemplo Acção Revolução, Capitulação e Aventura, O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, O Partido com Paredes de Vidro, obras que assumem uma actualidade imensa no quadro político, económico e social que vivemos.
Álvaro Cunhal afirmou um dia numa entrevista que não havia zonas brancas na sua vida.
E por isso a sua vida, a sua acção, a sua obra não cabem de facto num retrato.
A sua determinação, o seu carácter, a sua verticalidade, dignidade e coragem, aliados a uma inteligência e um talento fulgurantes, a sua energia que ia além dos limites da força física e anímica normais, o seu profundo humanismo em relação às pessoas e à vida, para além da admiração e do reconhecimento dão-nos o estímulo do exemplo.
Exemplo que não é contemplativo, que se ancora e perdura em cada um de nós, sem copiar, se funda na aprendizagem permanente que resulta do fazer e intervir na incansável luta por uma vida melhor e pela transformação da sociedade, tal como Álvaro Cunhal gostava que fizéssemos.
António Borges Coelho
O livro Retratos de Álvaro Cunhal traz as marcas inconfundíveis do pintor Armando Alves e as do editor da Colecção Duas Horas de Leitura, de saudosa memória, José da Cruz Santos. «Este não é ainda o livro que idealizei», escreve. Folheiem, apalpem. Sintam a beleza.
Eduardo Gageiro abre a galeria dos retratos. Álvaro Cunhal está a olhar para nós, límpido, inteiro, e com um travo de ironia. Cito ao acaso outros retratos: de Acácio de Carvalho, Álvaro Siza, Albuquerque Fernandes, António Fernando, Armando Alves, Emerenciano, João Abel Manta, Jorge Ulisses, Júlia Landolt e o de Albuquerque Mendes, datado de 1933. Jerónimo de Sousa inicia os retratos em prosa e verso. Sóbrio, assinala os traços institucionais e também humanos do dirigente comunista que, nas suas palavras, deixa «um imperecível e fascinante património teórico, político, artístico». Seguem‑se vinte e oito testemunhos, alguns insólitos, de amigos, de camaradas, de antigos companheiros e também de adversários políticos. Começam com um poema de Albano Martins e vão por aí fora. Não vou falar de todos. Não vos quero tirar o prazer da descoberta. O poeta e meu amigo Armando Silva Carvalho diz que «o sorriso do Álvaro era assustador» e termina «foi um ser humano totalmente vertical. E grande, muito, muito grande, num país tão pequeno». Eduardo Lourenço lembra «a exemplaridade do destino comunista de Álvaro Cunhal». «É de tal ordem que nem o fim do comunismo histórico, a derrocada do ex‑império soviético, a abalaram». Francico Duarte Mangas, numa prosa densa, evoca a vida clandestina no Hóspede. José Manuel Mendes assina três páginas biográficas de comovente intensidade. Já Manuel António Pina que partilhou algumas das convicções de Cunhal e discordou de muitas outras, deseja «absurdamente que homens assim, do mesmo intransigente tamanho, por fora e por dentro, renasçam, seja lá de que lado for». Luís Francisco Rebelo evoca emocionado a aparição de Álvaro Cunhal no Tribunal Plenário de Lisboa. Manuel Gusmão canta: «Nós que além de ti e de mim somos / a terceira coisa o fantasma o espectro / que lhes continua a assolar o mundo.» E Pedro Pais: «Não gosto de te ver subir aos céus, ungido pai dos pobres/ não mereceste o tempo que te coube.» São José Almeida evoca o político que não era de plástico. Vasco Graça Moura interroga‑se se o livro A arte, o artista e a sociedade não será «uma encíclica de Álvaro Cunhal». Breves notas. Há muito mais para ler e descobrir.
Cruz Santos também me pediu um testemunho. Disse‑lhe que já tinha dito e escrito tudo. Depois disso, num colóquio universitário onde comparávamos o percurso de Álvaro Cunhal e de Palmiro Togliati, escrevi mais algumas palavras que ficaram inéditas. Desse texto retiro um novo testemunho.
Os Homens da Bicicleta
Álvaro Cunhal viveu a infância e a adolescência num tempo histórico marcado pela Primeira Guerra Mundial, a Revolução de Outubro e a crise mundial de 1929. O sistema capitalista parecia caminhar para o abismo e o poder comunista na União Soviética anunciava para muitos a aurora da revolução mundial. Na década de trinta iniciou a actividade política como dirigente académico e líder da Juventude Comunista. Esteve na União Soviética, passou pela Guerra Civil de Espanha, conheceu a prisão e a tortura. Mas foi na década de quarenta que se revelou o dirigente político de excepção e se forjou o núcleo forte dos seus companheiros de luta.
A batalha de Estalinegrado, o desembarque em Itália e na Normandia, a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial provocaram uma onda de esperança em todo o mundo que cedo arrefeceu com o início da Guerra Fria.
Em 1941 o PCP organizava um corpo de revolucionários profissionais. Entre eles alguns militantes desembarcados do Tarrafal. O aparelho de propaganda era separado do aparelho político. Com o texto Se fores preso camarada, Álvaro Cunhal e os seus companheiros indicavam aos militantes o caminho da firmeza até ao último sacrifício.
As greves de 1943, de 1944 e 1947 alargaram a influência do partido clandestino no meio operário, em muitos sectores da população camponesa, na pequena burguesia e também entre os intelectuais. A bicicleta ficou como o símbolo da entrega revolucionária. Ela ligava o Partido ao país dos humilhados e ofendidos.
E quando a guerra acabou, a esperança inundou as ruas com multidões que festejavam a vitória. A liberdade parecia estar ao alcance da mão mas recuava sempre. O MUNAF, o MUD e o MUD Juvenil organizaram, sob o impulso determinante do PCP, a face legal das diferentes resistências à ditadura. Artistas e escritores jovens desenvolviam uma arte combatente, comprometida com os famintos da terra. Nascia o Neo‑Realismo.
Mergulhado na clandestinidade, Álvaro Cunhal surgia como um dos cérebros mais destacados das movimentações do PCP. Alguns dos seus companheiros começaram a ficar pelo caminho: Soeiro Pereira Gomes, Pulido Valente, por doença, Alex (o camara a Alexandre, o Ramos de Até Amanhã, Camaradas), abatido a tiro na estrada de Belas.
O ano de 1949 começou com as movimentações populares em torno da candidatura do general Norton de Matos e seguiu com a prisão no Luso de Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira. Cunhal passaria onze anos atrás das grades, oito dos quais em condições terríveis de isolamento na Penitenciária de Lisboa. Resistiu ocupando na medida do possível o tempo prisional em trabalho literário, teórico e artístico sem descurar qualquer possibilidade de ligação clandestina à vida cá de fora e à própria actividade do Partido. A tradução e posterior edição sob pseudónimo do Rei Lear mostram que os contactos com o exterior, apesar da apertada vigilância prisional, foram possíveis.
Luzes e Sombras
Na segunda metade da década de quarenta e primeira metade da década de cinquenta, que poderia ler em Portugal um jovem estudante sem recursos, empurrado para a luta política pela ditadura e as injustiças sociais ou um funcionário clandestino como Álvaro Cunhal, limitado ainda pelo peso das tarefas partidárias?
Passado o tempo dos fugitivos da Alemanha nazi e a «loucura» do volfrâmio, o movimento das pessoas era quase nulo. A massa dos portugueses vivia prisioneira dentro do seu próprio território. Havia fome. Nalgumas terras do interior ainda se aplicavam castigos corporais. E no Norte a reforma dos trabalhadores rurais era a mão estendida com uma ladainha de Padre Nossos. No campo cultural, a censura começava na família, continuava na escola, na igreja, no emprego, nos ouvidos dos cafés, viajava nos transportes, submetia a prosa mediática ao lápis azul dos coronéis, empurrava para o cárcere pessoas que manifestassem opiniões não autorizadas.
A rádio e o cinema dominavam o campo mediático. À noite, muitos ligavam a BBC e a rádio Moscovo. A televisão iria dar os primeiros passos. Nos centros urbanos o mundo exterior chegava com o cinema. Roma, Cidade Aberta com Ana Magnani, Ladrão de Bicicletas, Arroz Amargo davam sentido à nossa luta. Nesse tempo quase era possível conhecer os livros que se publicavam e trocavam. Seguíamos todos pelo mesmo corredor. Hoje perdemo‑nos em múltiplos labirintos, que aqui e ali escondem tesouros, mas temos cada vez mais dificuldade em os encontrar. O excesso provoca o cansaço. Compramos e tantas vezes não lemos. Os livros proibidos vinham de comboio de França como no tempo de Eça de Queirós, mas com graves perigos, e também de barco, do Brasil e do México.
Marx e Lénine eram demónios que ateavam as chamas do inferno. Só dizer o seu nome queimava. A leitura de Marx só explodiu na década de sessenta com o Maio francês. E quantos marxistas portugueses leram, por exemplo, o II e o III volumes de O Capital? O Manifesto Comunista, em tradução espanhola, veio‑me parar às mãos pelos meus 17 anos. Li‑o em voz alta aos meus amigos como quem lê um poema. Lénine era o clássico por excelência. Circulavam também as lições de Pulitzer aos operários e As questões do Leninismo, de Estaline. Trotsky, um autor maldito, Plekanov, legível, mas com cautelas, Rosa Luxemburgo e Gramsci, autores ausentes. Em contrapartida, líamos a carta que Lénine escreveu a Clara Zetkin sobre a questão sexual.
A grande literatura era editada pelos Livros do Brasil, a Editorial Inquérito, a Europa‑América; a literatura cor de rosa e de aventuras pela Romano‑Torres. A Cosmos, fundada em 1941 por Bento de Jesus Caraça, procurava aproximar a cultura do mundo operário.
Na formação e na inspiração para o combate político, a Seara Nova e a Vértice, difusoras encobertas de ideias marxistas, tinham um papel relevante. A República despertava nos chamados tempos eleitorais e os suplementos literários do Diário de Lisboa e do Comércio do Porto alimentavam uma pequenina chama de cultura.
O Avante! era o organizador das lutas clandestinas. Lia‑se às escondidas, muitas vezes nas casas de banho das fábricas e dos escritórios. Um pequeno agricultor analfabeto trouxe durante anos um exemplar ao pescoço como um santinho dentro do escapulário.
Na fortaleza de Peniche
Vivi cinco anos, forçadamente, na Fortaleza de Peniche, metade dos quais com Álvaro Cunhal no Pavilhão C. As condições prisionais eram duríssimas. Só nos dois meses que antecederam a fuga foram um tanto aliviadas, devido a uma campanha internacional que levou alguns activistas estrangeiros a visitar a cadeia.
O mobiliário das celas era constituído unicamente pela cama e pelo balde. Não podíamos escrever sentados na cama. À família, só no refeitório, durante uma hora, em silêncio e na presença do guarda. Não eram permitidas bibliotecas. Para entrar um livro, tinha de sair o outro. As celas eram revistadas de surpresa para controlo dos nossos escritos e à procura de mensagens clandestinas. Apesar disso, estudávamos e escrevíamos. Vivíamos, como vedes, em transgressão permanente. Líamos os grandes autores da literatura nacional e universal. Dos contemporâneos cito Sartre, José Gomes Ferreira, Alexandre O'Neill, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Fernando Pessoa. Da biblioteca veio mesmo o jornal O Diabo. Chegaram também álbuns de arte, trazidos pela família de Cunhal. Para quebrar o branco terrível das paredes, eu ficava horas a olhar postais com as searas e os céus de Van Gogh. Mesmo com os corvos. Alguns camaradas alertavam‑me. A leitura de Fernando Pessoa não favorecia o ardor revolucionário. Álvaro Cunhal, recordo‑o sem qualquer dúvida, chamou‑me um dia a atenção para a beleza destes versos de A Mensagem:
A literatura dominava as nossas leituras. As conversas possíveis eram sobre política, economia e os livros que líamos e conseguíamos trocar. Muitas vezes ouvi, em privado, críticas de Cunhal aos caminhos que seguia a arte soviética. Trocámos impressões sobre o relatório de Krutchov ao XX Congresso. Li‑o no Aljube. Estava incomunicável mas a Pide deixou entrar o Diário Popular que trazia o relatório. Quando entrei no Forte de Caxias, um camarada lançou a pergunta: «Que pensas do relatório Krutchov? ‑ No essencial, é verdadeiro. ‑ O inimigo está a falar pela tua boca.»
Com Cunhal, em Peniche, a discussão foi serena. Ele condenava o chamado culto da personalidade e aceitava no geral as críticas. No entanto, não simpatizava com Krutchov. Considerava que fragilizara o campo socialista.
Numa conversa, durante a lavagem da louça, insisti na prática socrática e cartesiana da dúvida para atingir a verdade. Respondeu‑me que as dúvidas não o atormentavam, querendo significar que não alteravam o caminho que traçara. As nossas conversas eram fragmentadas. O guarda estava sempre presente e registava tudo. ‑ Já disse que não podem falar em política! ‑ Depois da fuga, até os nossos sonhos apontavam, pois dormíamos com o guarda sentado do outro lado das grades.
O camarada Álvaro
A vida tormentosa de Cunhal presta‑se a metáforas. Nos anos da revolução, jornais e folhas volantes insistiam no Satanás. A imagem do desembarque no aeroporto perante uma multidão eléctrica correu mundo. Um poeta morria, e outro, Pedro Om, horas depois, num restaurante do Bairro Alto. De braços abertos em cima da chaimite não era mesmo um Satanás ameaçando o capital com as chamas do inferno? A recepção popular não lhe subiu à cabeça. Estava tenso. Encontrei‑o casualmente à tarde em Campo de Ourique, junto à casa do José Maria do Rosário, antes de se dirigir para a Cova da Moura. Teria sido seguido? Estava preocupado com a segurança da direcção do Partido.
Para Satanás faltava‑lhe o jogo da intriga política, a deslealdade, o prazer da facada nas costas. Jogava limpo. Convocava os que falavam por trás. Não era de muitas falas e de falar de si próprio, marcas de um homem que na vida toda travara duríssimo combate político contra os inimigos externos e as contradições que nasciam no seu próprio campo. Até os adversários políticos reconheceram que, no pleno da revolução de 1974, não dizia uma coisa para fazer outra.
A arriscada fuga de 3 de Janeiro de 1960 ajusta‑se mais à imagem do arcanjo São Miguel. Vencia os demónios da Pide e mostrava que Salazar podia ser vencido. Ouço ainda os gritos de um dos guardas chorando: ‑ Ó da Guarda! fugiram os presos! - Respondiam‑lhe risadas no Largo onde ao fim da tarde as mulheres de sete saias cosiam as redes e jogavam a pela.
A metáfora do S. Miguel pode aplicar‑se também à subida triunfal ao alto da chaimite, mas principalmente à aura que granjeou junto do povo operário, dos camponeses e de muitos intelectuais. A gesta revolucionária não lhe queimou a auréola. Mas não tinha armadura. Cuidava da aparência e da roupa mas vestia com modéstia. Um dia encontrei‑o na sede da Soeiro Pereira Gomes com um pacote de leite em pó na mão. Era o mesmo leite que, levado pela família, bebia na Fortaleza de Peniche.
O conflito sino‑soviético provocou cisões conhecidas. A invasão da Checoslováquia pelas tropas soviéticas em 1968 afastou do Partido alguns quadros e muitos militantes, particularmente do sector intelectual. Álvaro Cunhal viveu intensamente esse desastre, mas, para ele, o futuro do seu Partido estava primeiro. Depois da queda do muro de Berlim e da implosão da União Soviética, vieram as expulsões e demissões de intelectuais. Saturno é e foi o tempo histórico que lhe coube viver. Não engoliu Pavel, Piteira ou Fogaça. Foram vítimas das contradições daquele tempo político e não do jogo maquiavélico de Cunhal. Fogaça, concorrente à direcção do Partido, não tinha a aura nem a sua capacidade teórica e política.
Cunhal era o camarada Álvaro, o Álvaro, o Alvarito. Nos primeiros dias de Janeiro de 1970 marcaram‑me um encontro no metro de Paris. «Há um camarada que te quer falar.» Vi‑o aproximar‑se, o cabelo mais grisalho. Antes de o abraçar, afaguei-lhe o rosto. Era o Alvarito. Não o via desde a noite da fuga que para ele significara a liberdade e para mim o regresso ao Aljube, à sede da Pide e à tortura da «estátua».
A queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética feriram‑no profundamente mas não destruíram a sua confiança nas promessas da história e da teoria. Abandonou o cargo de secretário‑geral mas ainda interveio a favor da facção que triunfaria na luta interna que corroía a direcção do Partido.
Nos últimos anos, meio cego, compararam‑no ao rei Lear, a mente continuava ágil.
Não saía. Queria preservar a imagem e a dignidade. Ele sabia que era o símbolo quase mítico de décadas de luta e sacrifício. E na .morte, multidões com lágrimas acompanharam‑no pelas ruas de Lisboa.
Jerónimo de Sousa
Fomos convidados para produzir uma intervenção a pretexto desta obra da iniciativa da «Afrontamento» e da «Modo de Ler», concretizada pelo empenhamento particular do amigo Cruz Santos titulada de Retratos de Álvaro Cunhal.
Tal como não há traço de pintor, ângulo de fotógrafo, poema ou depoimento com dimensão e conteúdo suficientes para acolher a singularidade política, ética, intelectual, artística e humana de Álvaro Cunhal, também esta intervenção não será bastante.
Porque a dimensão dada pelo olhar sob uma qualquer vertente, nunca está completa, antes carece de outras de que é indissociável.
Mas há um ponto de partida que podemos ter. A sua obra tanto política como artística é intrínseca à sua opção política a que dedicou a vida inteira e a vida toda, a partir do momento em que integrou as fileiras do Partido Comunista Português, como militante e dirigente. Vivendo um período histórico de grande intensidade e com transformações fantásticas desde a Revolução de Outubro à Revolução de Abril, a derrota do nazi-fascismo, a rupturas e mudanças, a avanços e recuos dos trabalhadores e dos povos, temperou a sua grande inteligência com o conhecimento que levou à produção de uma obra teórica notável, também ela inseparável da sua acção prática de organizador e dirigente comunista que encontrava nos anseios, na luta dos trabalhadores e dos povos, fonte de experiência para a abordagem da História portuguesa do século XX e uma contribuição audaciosa para o desenvolvimento criativo das ideias de Marx, Engels e Lénine. Anseios, lutas dos trabalhadores e dos povos que, tal como a luta corajosa dos seus camaradas, lhe serviram de inspiração para criar as personagens dos seus romances e desenhos. Inevitavelmente tornou-se uma ameaça para os detentores e torcionários do regime fascista.
E foi por isso que estando preso durante 12 anos, foi sujeito a oito anos de rigoroso isolamento onde mais do que a morte física se pretendeu a morte da sua inteligência e das suas capacidades intelectuais. É nestas duras circunstâncias que Álvaro Cunhal revelou não só a coragem física mas a sua inabalável superioridade moral e psicológica, assumindo-se não como prisioneiro humilhado e torturado mas como um combatente para servir a sua causa e ideal.
Durante 14 meses, atirado para um cárcere sem sol que o bafejasse, sem visitas solidárias, sem papel ou lápis que fosse, foi mentalmente construindo a sua defesa ante o tribunal plenário, defesa que acabou por se traduzir numa peça exemplar que fascinou e deu ânimo a todos os que lutaram contra o fascismo. De acusado a acusador, sem se dirigir aos juízes dependentes do poder político, partindo do enquadramento do papel do movimento comunista internacional e da análise da situação política portuguesa, rematou sabendo o que o esperava em termos de sentença: eram os então governantes e o seu chefe Salazar, quem deveria sentar-se no banco dos réus, por agirem contra os interesses do povo e do país, por quererem arrastar Portugal para uma guerra criminosa, por empregarem métodos inconstitucionais, ilegais e terroristas.
Na prisão, de uma forma intensa, dedica-se à leitura e ao estudo. É aí que faz a tese pioneira sobre «O Aborto», dá Contribuição ao estudo da questão agrária, escreve Até amanhã camaradas, traduz o Rei Lear, reflecte e escreve sobre Darwin, adianta o estudo sobre As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, faz desenhos e pinta.
E, mesmo com esta intensíssima reflexão, criação e elaboração intelectuais, manteve uma luta tenaz pelos seus direitos de preso político escrevendo ao director da prisão, e nunca perdendo o contacto com a Direcção do Partido, contornando a vigilância policial e prisional.
Passando da Penitenciária de Lisboa para a Fortaleza de Peniche, aí dá continuidade à reflexão própria sobre questões relativas à arte e à estética, escreve as Cinco notas sobre a forma e conteúdo no seguimento da anterior polémica com José Régio, reflexão prosseguida posteriormente no Prefácio ao Romance Quando os Lobos Uivam, de Aquilino Ribeiro.
Tema apaixonante que haveria de referenciar e retomar depois do 25 de Abril, na 1.ª Assembleia do sector de artes e letras da Organização Regional de Lisboa, em que manifesta a defesa de uma arte socialmente comprometida inseparável dos fenómenos da criação artística, conducente à ideia forte da desejável intervenção do artista com a sua arte ao lado dos trabalhadores, do povo, dos mais fracos, mas sem subordinação a qualquer escola ou tendência estética.
A célebre fuga da Fortaleza de Peniche, organizada pelo Partido, que constituiu um abalo para o regime fascista, levou Álvaro Cunhal de novo à luta clandestina, ao reforço da organização do Partido e consequentemente a uma ímpar produção teórica que comporta trabalhos como, entre outros A tendência anarco-liberal na organização do trabalho de Direcção, O desvio de direita dos anos 1956-1959, matérias aliás desenvolvidas no notável e histórico Rumo à Vitória onde para além da caracterização da situação política portuguesa, da situação económica e social, da natureza de classe da ditadura fascista, define os objectivos da revolução democrática e nacional, o derrubamento do fascismo e a política de alianças sociais. Obra notável pela profundidade da análise e clareza de objectivos que, produzida 10 anos antes da revolução de Abril, afirma a dado passo: «chegará o dia em que as forças armadas deixarão de ser um eficiente apoio de Salazar e se tornarão em parte considerável uma arma da revolução democrática e nacional. Canhões, tanques, aviões, metralhadoras, espingardas deixarão de voltar-se contra o povo e, ao lado do povo voltar-se-ão, nesse dia, contra o próprio Governo».
Depois de Abril - que ele considerou o acto mais moderno e avançado da nossa época contemporânea, o período mais realizador da História do Partido – a par da intensa intervenção política na vida do Partido, não parou a sua genial capacidade de produzir, reflectindo, elaborando, teorizando sobre a realidade que se manifesta nas suas obras sobre a revolução: A Revolução Portuguesa – o passado e o futuro, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contra-revolução confessa-se).
No plano político e partidário demonstrando o papel insubstituível do PCP na transformação da sociedade, na necessidade do seu reforço, registando experiências, assinalando erros e acertos, avanços e recuos, reflectindo, ouvindo, ouvindo muito, produz obras de grande actualidade que vão para além do Partido, como por exemplo Acção Revolução, Capitulação e Aventura, O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, O Partido com Paredes de Vidro, obras que assumem uma actualidade imensa no quadro político, económico e social que vivemos.
Álvaro Cunhal afirmou um dia numa entrevista que não havia zonas brancas na sua vida.
E por isso a sua vida, a sua acção, a sua obra não cabem de facto num retrato.
A sua determinação, o seu carácter, a sua verticalidade, dignidade e coragem, aliados a uma inteligência e um talento fulgurantes, a sua energia que ia além dos limites da força física e anímica normais, o seu profundo humanismo em relação às pessoas e à vida, para além da admiração e do reconhecimento dão-nos o estímulo do exemplo.
Exemplo que não é contemplativo, que se ancora e perdura em cada um de nós, sem copiar, se funda na aprendizagem permanente que resulta do fazer e intervir na incansável luta por uma vida melhor e pela transformação da sociedade, tal como Álvaro Cunhal gostava que fizéssemos.
António Borges Coelho
O livro Retratos de Álvaro Cunhal traz as marcas inconfundíveis do pintor Armando Alves e as do editor da Colecção Duas Horas de Leitura, de saudosa memória, José da Cruz Santos. «Este não é ainda o livro que idealizei», escreve. Folheiem, apalpem. Sintam a beleza.
Eduardo Gageiro abre a galeria dos retratos. Álvaro Cunhal está a olhar para nós, límpido, inteiro, e com um travo de ironia. Cito ao acaso outros retratos: de Acácio de Carvalho, Álvaro Siza, Albuquerque Fernandes, António Fernando, Armando Alves, Emerenciano, João Abel Manta, Jorge Ulisses, Júlia Landolt e o de Albuquerque Mendes, datado de 1933. Jerónimo de Sousa inicia os retratos em prosa e verso. Sóbrio, assinala os traços institucionais e também humanos do dirigente comunista que, nas suas palavras, deixa «um imperecível e fascinante património teórico, político, artístico». Seguem‑se vinte e oito testemunhos, alguns insólitos, de amigos, de camaradas, de antigos companheiros e também de adversários políticos. Começam com um poema de Albano Martins e vão por aí fora. Não vou falar de todos. Não vos quero tirar o prazer da descoberta. O poeta e meu amigo Armando Silva Carvalho diz que «o sorriso do Álvaro era assustador» e termina «foi um ser humano totalmente vertical. E grande, muito, muito grande, num país tão pequeno». Eduardo Lourenço lembra «a exemplaridade do destino comunista de Álvaro Cunhal». «É de tal ordem que nem o fim do comunismo histórico, a derrocada do ex‑império soviético, a abalaram». Francico Duarte Mangas, numa prosa densa, evoca a vida clandestina no Hóspede. José Manuel Mendes assina três páginas biográficas de comovente intensidade. Já Manuel António Pina que partilhou algumas das convicções de Cunhal e discordou de muitas outras, deseja «absurdamente que homens assim, do mesmo intransigente tamanho, por fora e por dentro, renasçam, seja lá de que lado for». Luís Francisco Rebelo evoca emocionado a aparição de Álvaro Cunhal no Tribunal Plenário de Lisboa. Manuel Gusmão canta: «Nós que além de ti e de mim somos / a terceira coisa o fantasma o espectro / que lhes continua a assolar o mundo.» E Pedro Pais: «Não gosto de te ver subir aos céus, ungido pai dos pobres/ não mereceste o tempo que te coube.» São José Almeida evoca o político que não era de plástico. Vasco Graça Moura interroga‑se se o livro A arte, o artista e a sociedade não será «uma encíclica de Álvaro Cunhal». Breves notas. Há muito mais para ler e descobrir.
Cruz Santos também me pediu um testemunho. Disse‑lhe que já tinha dito e escrito tudo. Depois disso, num colóquio universitário onde comparávamos o percurso de Álvaro Cunhal e de Palmiro Togliati, escrevi mais algumas palavras que ficaram inéditas. Desse texto retiro um novo testemunho.
Os Homens da Bicicleta
Álvaro Cunhal viveu a infância e a adolescência num tempo histórico marcado pela Primeira Guerra Mundial, a Revolução de Outubro e a crise mundial de 1929. O sistema capitalista parecia caminhar para o abismo e o poder comunista na União Soviética anunciava para muitos a aurora da revolução mundial. Na década de trinta iniciou a actividade política como dirigente académico e líder da Juventude Comunista. Esteve na União Soviética, passou pela Guerra Civil de Espanha, conheceu a prisão e a tortura. Mas foi na década de quarenta que se revelou o dirigente político de excepção e se forjou o núcleo forte dos seus companheiros de luta.
A batalha de Estalinegrado, o desembarque em Itália e na Normandia, a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial provocaram uma onda de esperança em todo o mundo que cedo arrefeceu com o início da Guerra Fria.
Em 1941 o PCP organizava um corpo de revolucionários profissionais. Entre eles alguns militantes desembarcados do Tarrafal. O aparelho de propaganda era separado do aparelho político. Com o texto Se fores preso camarada, Álvaro Cunhal e os seus companheiros indicavam aos militantes o caminho da firmeza até ao último sacrifício.
As greves de 1943, de 1944 e 1947 alargaram a influência do partido clandestino no meio operário, em muitos sectores da população camponesa, na pequena burguesia e também entre os intelectuais. A bicicleta ficou como o símbolo da entrega revolucionária. Ela ligava o Partido ao país dos humilhados e ofendidos.
E quando a guerra acabou, a esperança inundou as ruas com multidões que festejavam a vitória. A liberdade parecia estar ao alcance da mão mas recuava sempre. O MUNAF, o MUD e o MUD Juvenil organizaram, sob o impulso determinante do PCP, a face legal das diferentes resistências à ditadura. Artistas e escritores jovens desenvolviam uma arte combatente, comprometida com os famintos da terra. Nascia o Neo‑Realismo.
Mergulhado na clandestinidade, Álvaro Cunhal surgia como um dos cérebros mais destacados das movimentações do PCP. Alguns dos seus companheiros começaram a ficar pelo caminho: Soeiro Pereira Gomes, Pulido Valente, por doença, Alex (o camara a Alexandre, o Ramos de Até Amanhã, Camaradas), abatido a tiro na estrada de Belas.
O ano de 1949 começou com as movimentações populares em torno da candidatura do general Norton de Matos e seguiu com a prisão no Luso de Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira. Cunhal passaria onze anos atrás das grades, oito dos quais em condições terríveis de isolamento na Penitenciária de Lisboa. Resistiu ocupando na medida do possível o tempo prisional em trabalho literário, teórico e artístico sem descurar qualquer possibilidade de ligação clandestina à vida cá de fora e à própria actividade do Partido. A tradução e posterior edição sob pseudónimo do Rei Lear mostram que os contactos com o exterior, apesar da apertada vigilância prisional, foram possíveis.
Luzes e Sombras
Na segunda metade da década de quarenta e primeira metade da década de cinquenta, que poderia ler em Portugal um jovem estudante sem recursos, empurrado para a luta política pela ditadura e as injustiças sociais ou um funcionário clandestino como Álvaro Cunhal, limitado ainda pelo peso das tarefas partidárias?
Passado o tempo dos fugitivos da Alemanha nazi e a «loucura» do volfrâmio, o movimento das pessoas era quase nulo. A massa dos portugueses vivia prisioneira dentro do seu próprio território. Havia fome. Nalgumas terras do interior ainda se aplicavam castigos corporais. E no Norte a reforma dos trabalhadores rurais era a mão estendida com uma ladainha de Padre Nossos. No campo cultural, a censura começava na família, continuava na escola, na igreja, no emprego, nos ouvidos dos cafés, viajava nos transportes, submetia a prosa mediática ao lápis azul dos coronéis, empurrava para o cárcere pessoas que manifestassem opiniões não autorizadas.
A rádio e o cinema dominavam o campo mediático. À noite, muitos ligavam a BBC e a rádio Moscovo. A televisão iria dar os primeiros passos. Nos centros urbanos o mundo exterior chegava com o cinema. Roma, Cidade Aberta com Ana Magnani, Ladrão de Bicicletas, Arroz Amargo davam sentido à nossa luta. Nesse tempo quase era possível conhecer os livros que se publicavam e trocavam. Seguíamos todos pelo mesmo corredor. Hoje perdemo‑nos em múltiplos labirintos, que aqui e ali escondem tesouros, mas temos cada vez mais dificuldade em os encontrar. O excesso provoca o cansaço. Compramos e tantas vezes não lemos. Os livros proibidos vinham de comboio de França como no tempo de Eça de Queirós, mas com graves perigos, e também de barco, do Brasil e do México.
Marx e Lénine eram demónios que ateavam as chamas do inferno. Só dizer o seu nome queimava. A leitura de Marx só explodiu na década de sessenta com o Maio francês. E quantos marxistas portugueses leram, por exemplo, o II e o III volumes de O Capital? O Manifesto Comunista, em tradução espanhola, veio‑me parar às mãos pelos meus 17 anos. Li‑o em voz alta aos meus amigos como quem lê um poema. Lénine era o clássico por excelência. Circulavam também as lições de Pulitzer aos operários e As questões do Leninismo, de Estaline. Trotsky, um autor maldito, Plekanov, legível, mas com cautelas, Rosa Luxemburgo e Gramsci, autores ausentes. Em contrapartida, líamos a carta que Lénine escreveu a Clara Zetkin sobre a questão sexual.
A grande literatura era editada pelos Livros do Brasil, a Editorial Inquérito, a Europa‑América; a literatura cor de rosa e de aventuras pela Romano‑Torres. A Cosmos, fundada em 1941 por Bento de Jesus Caraça, procurava aproximar a cultura do mundo operário.
Na formação e na inspiração para o combate político, a Seara Nova e a Vértice, difusoras encobertas de ideias marxistas, tinham um papel relevante. A República despertava nos chamados tempos eleitorais e os suplementos literários do Diário de Lisboa e do Comércio do Porto alimentavam uma pequenina chama de cultura.
O Avante! era o organizador das lutas clandestinas. Lia‑se às escondidas, muitas vezes nas casas de banho das fábricas e dos escritórios. Um pequeno agricultor analfabeto trouxe durante anos um exemplar ao pescoço como um santinho dentro do escapulário.
Na fortaleza de Peniche
Vivi cinco anos, forçadamente, na Fortaleza de Peniche, metade dos quais com Álvaro Cunhal no Pavilhão C. As condições prisionais eram duríssimas. Só nos dois meses que antecederam a fuga foram um tanto aliviadas, devido a uma campanha internacional que levou alguns activistas estrangeiros a visitar a cadeia.
O mobiliário das celas era constituído unicamente pela cama e pelo balde. Não podíamos escrever sentados na cama. À família, só no refeitório, durante uma hora, em silêncio e na presença do guarda. Não eram permitidas bibliotecas. Para entrar um livro, tinha de sair o outro. As celas eram revistadas de surpresa para controlo dos nossos escritos e à procura de mensagens clandestinas. Apesar disso, estudávamos e escrevíamos. Vivíamos, como vedes, em transgressão permanente. Líamos os grandes autores da literatura nacional e universal. Dos contemporâneos cito Sartre, José Gomes Ferreira, Alexandre O'Neill, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Fernando Pessoa. Da biblioteca veio mesmo o jornal O Diabo. Chegaram também álbuns de arte, trazidos pela família de Cunhal. Para quebrar o branco terrível das paredes, eu ficava horas a olhar postais com as searas e os céus de Van Gogh. Mesmo com os corvos. Alguns camaradas alertavam‑me. A leitura de Fernando Pessoa não favorecia o ardor revolucionário. Álvaro Cunhal, recordo‑o sem qualquer dúvida, chamou‑me um dia a atenção para a beleza destes versos de A Mensagem:
Que costa é esta que as ondas contam
E se não pode encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?
A literatura dominava as nossas leituras. As conversas possíveis eram sobre política, economia e os livros que líamos e conseguíamos trocar. Muitas vezes ouvi, em privado, críticas de Cunhal aos caminhos que seguia a arte soviética. Trocámos impressões sobre o relatório de Krutchov ao XX Congresso. Li‑o no Aljube. Estava incomunicável mas a Pide deixou entrar o Diário Popular que trazia o relatório. Quando entrei no Forte de Caxias, um camarada lançou a pergunta: «Que pensas do relatório Krutchov? ‑ No essencial, é verdadeiro. ‑ O inimigo está a falar pela tua boca.»
Com Cunhal, em Peniche, a discussão foi serena. Ele condenava o chamado culto da personalidade e aceitava no geral as críticas. No entanto, não simpatizava com Krutchov. Considerava que fragilizara o campo socialista.
Numa conversa, durante a lavagem da louça, insisti na prática socrática e cartesiana da dúvida para atingir a verdade. Respondeu‑me que as dúvidas não o atormentavam, querendo significar que não alteravam o caminho que traçara. As nossas conversas eram fragmentadas. O guarda estava sempre presente e registava tudo. ‑ Já disse que não podem falar em política! ‑ Depois da fuga, até os nossos sonhos apontavam, pois dormíamos com o guarda sentado do outro lado das grades.
O camarada Álvaro
A vida tormentosa de Cunhal presta‑se a metáforas. Nos anos da revolução, jornais e folhas volantes insistiam no Satanás. A imagem do desembarque no aeroporto perante uma multidão eléctrica correu mundo. Um poeta morria, e outro, Pedro Om, horas depois, num restaurante do Bairro Alto. De braços abertos em cima da chaimite não era mesmo um Satanás ameaçando o capital com as chamas do inferno? A recepção popular não lhe subiu à cabeça. Estava tenso. Encontrei‑o casualmente à tarde em Campo de Ourique, junto à casa do José Maria do Rosário, antes de se dirigir para a Cova da Moura. Teria sido seguido? Estava preocupado com a segurança da direcção do Partido.
Para Satanás faltava‑lhe o jogo da intriga política, a deslealdade, o prazer da facada nas costas. Jogava limpo. Convocava os que falavam por trás. Não era de muitas falas e de falar de si próprio, marcas de um homem que na vida toda travara duríssimo combate político contra os inimigos externos e as contradições que nasciam no seu próprio campo. Até os adversários políticos reconheceram que, no pleno da revolução de 1974, não dizia uma coisa para fazer outra.
A arriscada fuga de 3 de Janeiro de 1960 ajusta‑se mais à imagem do arcanjo São Miguel. Vencia os demónios da Pide e mostrava que Salazar podia ser vencido. Ouço ainda os gritos de um dos guardas chorando: ‑ Ó da Guarda! fugiram os presos! - Respondiam‑lhe risadas no Largo onde ao fim da tarde as mulheres de sete saias cosiam as redes e jogavam a pela.
A metáfora do S. Miguel pode aplicar‑se também à subida triunfal ao alto da chaimite, mas principalmente à aura que granjeou junto do povo operário, dos camponeses e de muitos intelectuais. A gesta revolucionária não lhe queimou a auréola. Mas não tinha armadura. Cuidava da aparência e da roupa mas vestia com modéstia. Um dia encontrei‑o na sede da Soeiro Pereira Gomes com um pacote de leite em pó na mão. Era o mesmo leite que, levado pela família, bebia na Fortaleza de Peniche.
O conflito sino‑soviético provocou cisões conhecidas. A invasão da Checoslováquia pelas tropas soviéticas em 1968 afastou do Partido alguns quadros e muitos militantes, particularmente do sector intelectual. Álvaro Cunhal viveu intensamente esse desastre, mas, para ele, o futuro do seu Partido estava primeiro. Depois da queda do muro de Berlim e da implosão da União Soviética, vieram as expulsões e demissões de intelectuais. Saturno é e foi o tempo histórico que lhe coube viver. Não engoliu Pavel, Piteira ou Fogaça. Foram vítimas das contradições daquele tempo político e não do jogo maquiavélico de Cunhal. Fogaça, concorrente à direcção do Partido, não tinha a aura nem a sua capacidade teórica e política.
Cunhal era o camarada Álvaro, o Álvaro, o Alvarito. Nos primeiros dias de Janeiro de 1970 marcaram‑me um encontro no metro de Paris. «Há um camarada que te quer falar.» Vi‑o aproximar‑se, o cabelo mais grisalho. Antes de o abraçar, afaguei-lhe o rosto. Era o Alvarito. Não o via desde a noite da fuga que para ele significara a liberdade e para mim o regresso ao Aljube, à sede da Pide e à tortura da «estátua».
A queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética feriram‑no profundamente mas não destruíram a sua confiança nas promessas da história e da teoria. Abandonou o cargo de secretário‑geral mas ainda interveio a favor da facção que triunfaria na luta interna que corroía a direcção do Partido.
Nos últimos anos, meio cego, compararam‑no ao rei Lear, a mente continuava ágil.
Não saía. Queria preservar a imagem e a dignidade. Ele sabia que era o símbolo quase mítico de décadas de luta e sacrifício. E na .morte, multidões com lágrimas acompanharam‑no pelas ruas de Lisboa.