Cooperação atlântica

Correia da Fonseca
No canal História, não acessível à maioria dos telespectadores ainda que já com significativa audiência potencial, o título de um programa anunciado despertou-me interesse: «O Exército Secreto da NATO». Naturalmente, fui ver o que estava dentro dele e, antes disso, de onde vinha, quem o fizera. Como muita gente mais, sei que averiguar de onde vem a informação que se nos depara é quase tão importante como saber quem cozinha a refeição que nos é servida quando, fora das nossas casas, nos arriscamos em lugares de higiene abaixo do incerto. No caso, fiquei a saber que o autor daquela reportagem era Andreas Pichler, um italiano nascido em Bolzano nos finais da década de 60 e com obra feita na área do telejornalismo. Era um mínimo de garantia e, por isso, fiquei para ver. Não me arrependi, antes pelo contrário. Com o apoio de depoimentos vários e de imagens do tempo, Pichler abordava a série de atentados terroristas que antes de 89 e durante cerca de vinte anos ocorreu na Europa Ocidental, designadamente na Alemanha, na Itália e na Bélgica, provocando dezenas de mortos e feridos entre a população civil. Citava lugares e nomes porventura ainda inscritos na memória de quem, vivendo nesse tempo, acompanhou os noticiários: uma praça em Munique, um banco em Milão, uma estação ferroviária em Bolonha, um quartel na Bélgica. Outros mais. Identificava figuras e a sua acção: por exemplo, revelava que o fundador dos serviços secretos da democrática RFA com capital em Bona foi um antigo membro das SS hitlerianas. E explicava as raízes de quanto revelava.

Para reforçar o ódio

A questão terá sido que, depois de 62 e do abrandamento do chamado «equilíbrio do terror» em resultado da solução da «crise dos mísseis» instalados em Cuba, a inteligência estratégica do Ocidente Atlântico receou o enfraquecimento do «medo dos russos» e do comunismo na opinião pública. Até então e desde 45, a perspectiva de uma possível «invasão vermelha» da Europa ocidental pelo exército soviético ainda era mantida quanto possível, mas a partir daquele momento debilitara-se muito e foi entendida a necessidade de reforçá-la. Para tanto, a manipulação do medo poderia ser prosseguida através de atentados terroristas preparados ou «teleguiados» pelos serviços secretos do mundo democrático: a norte-americana CIA, o britânico MI6 e serviços com equiparáveis vocações de países do continente europeu, com destaque para alemães, italianos e belgas, ter-se-ão coligado e metido mãos à obra. Passara talvez o tempo de formações militares clandestinas que aguardavam a tal invasão soviética para no momento certo agirem não tanto contra os tanques «vindos do frio» quanto contra personalidades pré-identificadas como comunistas ou simpatizantes do comunismo: segundo a reportagem, eram organizações «preparadas para assassinar» alvos escolhidos, e passava-se às acções terroristas que matavam indiscriminadamente. O trunfo situava-se na acusação implícita ou explícita de que tais acções eram praticadas pelos comunistas (amalgamando-se, para aplicação à opinião pública a condicionar, os comunistas solidários com a URSS e a esquerda supostamente «extrema» que seria responsabilizada por alguns atentados e em que a CIA ou similares muitas vezes estaria infiltrada). O importante era revitalizar o anticomunismo graças ao medo, à indignação pública, à condenação ética, ao ódio. Toda a reportagem de Pichler se orientou no sentido de o recordar e provar.

Um momento de ar limpo

A reportagem transmitida pelo canal História teve o curioso mérito de chegar aos nossos olhos poucos dias depois da Grande Farra que foi o conjunto dos festejos pelo derrube do Muro de Berlim e do caldo de desinformação acerca da RDA em que o arraial foi servido. Uma vez mais, como foi claramente visto e entendido por quem olhou aquilo com olhos de ver e cabeça de pensar, o objectivo da manobra foi então o mesmo que décadas atrás motivou a criação das diversas organizações clandestinas que, coordenadas, consubstanciaram o que Andreas Pichler designou em título por «exército secreto da NATO». Ficou na reportagem suficientemente claro que a RDA foi desde o seu primeiro dia, inevitavelmente, um alvo a exterminar, objectivo complementar da sinistra fogueira anticomunista alimentada por todos os meios. É claro que esta reportagem não garante a permanente objectividade da programação do canal História, longe disso. Mas foi um momento de ar limpo injectado num ambiente carregado de toxinas. Nada mau.


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