Os rendimentos dos portugueses

A propaganda de Sócrates e a verdade dos factos

Anselmo Dias
No seguimento dos nossos artigos no jornal «Avante» de 13 e 20 de Agosto, relativos ao «Rendimento dos Portugueses», apreciamos agora outros dados tendentes a visualizar, sob vários prismas, a dimensão dos altos rendimentos de uns tantos e dos baixos rendimentos da grande parte das famílias portuguesas.
Recordamos que os 20% da população com os rendimentos mais elevados declararam, em 2007, ter usufruído de cerca de 43 600 milhões de euros, enquanto que os 20% da população com os mais baixos rendimentos declararam ter recebido cerca de 3400 milhões de euros, ou seja, enquanto a uns coube 54,72% do «bolo», a outros coube as migalhas de 4,26%.
Daqui resulta um coeficiente de 12,85, muitíssimo superior aos 6,1 referidos por José Sócrates, embora o primeiro diga respeito ao rendimento bruto e o segundo diga respeito ao rendimento líquido, este último influenciado pela aplicação das taxas progressivas do IRS.
Conforme dissemos em artigos anteriores o conceito de «coeficiente» é de difícil assimilação a quem não está familiarizado com tal indicador.
Para a sua compreensão vejamos um exemplo, na presunção, meramente teórica, de que todo o rendimento dos mais ricos seria canalizado para a alimentação, composta por pequeno-almoço, almoço, lanche, jantar e ceia.
Assim sendo:
coeficiente de 6,1: Os mais ricos teriam direito a comer, durante um mês, cinco refeições completas por dia. Os mais pobres só poderiam ter refeições completas durante 4 dias. No 5.º dia a ceia já seria afectada parcialmente. A partir do 6.º dia passaria a vigorar o jejum até ao fim do mês;
coeficiente 12,85: Os mais ricos teriam direito a comer, durante um mês, cinco refeições completas por dia. Os mais pobres só poderiam ter refeições completas durante 2 dias. No 3.º dia já não haveria sobremesa ao almoço e, muito menos, possibilidade de jantarem e de cearem. A partir do 4.º dia passaria a vigorar o jejum até ao fim do mês.
É claro que estamos a falar de um caso extremo, no pressuposto de que todo o rendimento era gasto em alimentação, situação que, no extracto social mais rico, não existe.
Este cenário, meramente teórico, tem apenas o efeito pedagógico de, através de uma imagem, (des)construir um conceito numérico tão difícil de entender como a escrita chinesa e ilustrar, com um exemplo, a diferença de rendimentos.
Colocada que foi a questão da diferença de rendimentos medida por um coeficiente estatístico, vejamos, então, a sua expressão por alguns distritos e regiões.

O coeficiente de desigualdades no rendimento a nível distrital e regional

Se dividirmos o valor declarado dos agregados familiares com os mais elevados rendimentos pelo valor declarado dos mais pobres, a conclusão é a seguinte: as maiores desigualdades correspondem, por ordem decrescente, a: Lisboa, Vila Real, Porto, Faro, Açores e Bragança, todos eles com coeficientes superiores a 12.
O caso extremo é Lisboa, com 15,17 de coeficiente, valor muito influenciado por ser neste distrito onde estão sedeadas as grandes empresas nacionais e estrangeiras e por ser aqui que reside um grande número de empresários, indivíduos a viver de rendimentos, jogadores da bolsa e de outras formas de «economia de casino», administradores, directores, altos funcionários do Estado e uma parte significativa do «baronato» das profissões liberais.
Estes dados são extremamente curiosos. E porquê? Porque mistura Lisboa com Vila Real quando entre eles não há nenhuma similitude, salvo a que decorre da exploração de quem trabalha por conta de outrem.
Em Lisboa, o rendimento médio anual dos 20% da população mais rica corresponde a 63 995 euros, enquanto que em Vila Real esse valor é de 39 102 euros.
Então porque é que os coeficientes de Lisboa e Vila Real são tão parecidos?
São estatisticamente parecidos por razões meramente matemáticas e não pela lógica social.
Com efeito, o rendimento médio anual das famílias mais pobres em Vila Real é de 2831 euros, o que significa cerca de 236 euros por mês (12 mensalidades), ou seja, o valor mais baixo a nível nacional. É pois por esta razão que Vila Real tem uma das maiores assimetrias, não tanto pelos rendimentos dos mais ricos mas sim pela pobreza dos mais pobres.
Este princípio aplica-se igualmente a Bragança, onde o rendimento médio dos agregados familiares mais pobres corresponde a 3369 euros, o que perfaz um rendimento mensal (12 mensalidades) de cerca de 281 euros por família. Dividamos este valor por cada membro familiar e estaremos em condições de perceber a dimensão da pobreza em Trás-os-Montes.
Quanto ao Sul, retenhamos a nossa atenção sobre os distritos de Faro e do Alentejo.

O caso de Faro

Faro, onde existem 12 famílias com rendimentos declarados superiores a 1 milhão de euros (fora aqueles que fugiram aos impostos, bem como aqueles que se «enganaram» nas contas), Faro, dizíamos nós, tem o 4.º coeficiente (12,86) mais elevado do País, devido quer ao facto de os agregados com os mais elevados rendimentos anuais usufruírem de 43 686 euros, quer, fundamentalmente, ao facto de as famílias mais pobres terem tido, em 2007, um rendimento mensal na ordem dos 283 euros.
Estamos a falar da 4.ª região do País com o PIB per capita mais elevado, o que comprova a falsidade daqueles que, repetidamente, afirmam que é preciso primeiramente produzir para, posteriormente, se poder distribuir. Se isto fosse verdade, em Faro não haveria tantas famílias a sobreviver com tão baixos rendimentos, isto numa região que, a seguir a Lisboa e ao Porto, detém a mais elevada concentração de milionários por km2.

O caso do Alentejo

Quanto aos coeficientes mais baixos, ou seja, uma maior aproximação entre os rendimentos mais elevados e os rendimentos mais baixos, tal situação verifica-se no Alentejo, designadamente em Portalegre e Évora, com coeficientes de 9,63 e 10,05, respectivamente.
Em termos absolutos, os 20% dos agregados familiares mais ricos usufruíram de 39 440 e 42 536 euros, respectivamente, enquanto às famílias mais pobres coube apenas 4095 e 4232 euros, também respectivamente.
O Alentejo não detém, de acordo com os dados do Ministério das Finanças, nem os rendimentos familiares mais elevados nem os rendimentos mais baixos, o que lhe confere, estatisticamente, uma posição com menores assimetrias, o que não significa, importa esclarecer, um adequado nível de vida para uma população envelhecida a sobreviver com pensões de miséria.

Regiões com os mais elevados rendimentos da população mais rica

Em Portugal, em 2007, apenas 190 famílias declararam ter tido rendimentos superiores a 1 milhão de euros, o que perfez, neste extracto social, uma média de 1 803 984 euros por agregado familiar.
Em artigo anterior dissemos que não acreditamos neste número.
Haverá, seguramente, muito mais gente a usufruir de rendimentos superiores a 1 milhão de euros, não só por aquilo que viemos a saber dos negócios do BCP, do BPN e do BPP, mas também pela correlação com o número de milionários existentes em Portugal.
Relacionar, em Portugal, os rendimentos oficialmente declarados às Finanças com as fortunas é o mesmo que relacionar a Betesga com o Rossio.
Indague-se, a este propósito, os Loureiros, o do Sul e o do Norte, e eles explicarão tal enigma, sem esquecer, naturalmente, o contributo que poderão dar a tal esclarecimento os intervenientes na alteração do uso da terra, obtendo inimagináveis mais-valias pela transformação de zonas agrícolas em zonas edificáveis, nos negócios do Fundo Social Europeu, das facturas falsas, do Casino de Lisboa, do Portucale, do Siresp, do Furacão, dos submarinos, do desmembramento do IPE, do edifício dos Correios de Coimbra e de outros patrimónios do Estado alienados a preço de amigos, a que se junta, na perspectiva dos conformistas, as «pequenas miudezas» ligadas aos desvios, avaliados em muitas centenas de milhões de euros, nas adjudicações do Estado.
E para quem tenha a memória curta juntemos a tudo isto o regafobe nas privatizações iniciadas por Cavaco Silva, aceleradas por António Guterres e mantidas em velocidade de cruzeiro pelos sucessores de um e outro.
Tudo isto para evidenciar o quê?
Para evidenciar que não acreditamos, de forma alguma, que haja apenas 190 famílias com rendimentos superiores a 1 milhão de euros.
A seguir aos extractos sociais atrás referidos, ou seja, aos ricaços que não tendo declarado rendimentos possuem um elevado património, bem como às famílias a usufruírem de mais de 1 milhão de euros por ano, a todas estas, seguem-se 18 528 agregados familiares a declararem rendimentos médios equivalentes a 220 844 euros.
O terceiro extracto social a usufruir ao mais altos rendimentos engloba perto de dez mil famílias com um rendimento médio anual na ordem dos 130 548 euros.
Onde residem tais famílias?
Vivem predominantemente em Lisboa, Coimbra, Porto, Setúbal, Açores e Madeira, ou seja os seis distritos e regiões autónomas com as médias de rendimentos mais elevadas no conjunto dos 20% da população mais rica.
Estes dados podem, à primeira vista, constituir alguma surpresa.
A surpresa do distrito de Coimbra aparecer em 2.º lugar, à frente do Porto e Setúbal.
A surpresa dos Açores aparecer à frente da Madeira.
Para nós a surpresa é haver surpresa num país em que a riqueza criada, a dimensão das fortunas e a declaração de rendimentos constituem uma espécie de «lego subvertido» cujas peças não se encaixam umas nas outras.

Uma situação transversal a todo o território

No seguimento da parte final do capítulo anterior vejamos, agora, os distritos com os mais baixos rendimentos, tendo como parâmetro os 20% da população mais pobre. (Nota: em artigo anterior, datado de 20 de Agosto, referimos os rendimentos médios em relação à totalidade dos agregados familiares, incluindo ricos e pobres. Agora referimos somente as médias relativamente ao universo das famílias com os menores rendimentos).
Já atrás dissemos que o valor mais baixo correspondia a Vila Real.
A seguir a Vila Real temos: Viana do Castelo, Viseu, Bragança, Faro, Braga, Guarda e Beja, todos com rendimentos mensais (12 mensalidades), inferiores a 300 euros por agregado familiar.
Caros leitores: tomamos a liberdade de chamar a vossa atenção para o facto de, nestes 7 distritos, estarmos a falar de rendimentos, por família, inferiores a 300 euros por mês.
Se em vez de circunscrevermos tais valores apenas a 7 distritos e os alagarmos a todo o espaço nacional o resultado é o seguinte: cerca de 887 000 famílias, de acordo com as médias desagregadas por distritos e regiões, têm um rendimento médio mensal (12 mensalidades) que vai dos já referidos 236 euros em Vila Real aos 354 euros no distrito de Coimbra, valores médios inferiores a 406 euros mensais, considerados, na altura, o limiar da pobreza.
Esta é a forma como, preocupada e conscientemente, olhamos para as desigualdades sociais em Portugal.
José Sócrates, propagandisticamente, sobre o mesmo tema fala no coeficiente de 6,1, um dos valores mais elevados da Europa, o que confere a Portugal o título de ser um dos países com as maiores diferenças nos rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres.
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Fonte:
- Ministério das Finanças;
- Revista «Exame» de Agosto de 2009;
Nota: Os cálculos quanto à distribuição dos rendimentos foram realizados por Elsa Maria Alves Dias


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