Na onda de comentadores

Correia da Fonseca
É sabido: aos domingos, por volta das nove da noite, milhares de telespectadores ligam para a TVI a fim de assistirem aos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa; isto se é que não acompanharam o Jornal Nacional desde o princípio, aproveitando a circunstância favorável de nos fins-de-semana não estar por lá a Manela. Para contrariar este êxodo que compreensivelmente lhe desagrada, a SIC convocou para a mesma hora dos mesmos dias, investindo igualmente nas funções de comentador político, o dr. Pacheco Pereira, importado directamente de Estrasburgo para aquela superfície comercial. Foi aí que eu o encontrei em conversa com Clara de Sousa, no passado domingo. Estava ele um pouquinho mais composto que noutras alturas, cabelinho penteado, roupas alinhadas, mas fiel ao que de essencial têm as suas prestações televisivas: o ar professoral de quem nunca esquece que é prodigiosamente inteligente e não quer fazer segredo disso; de quem tem não sei quantos milhares de livros na Marmaleira, que é a sua terra, e entende conveniente que esse significativo dado seja do domínio público para mais justa avaliação do dono de tão notável biblioteca.
O número de comentadores políticos com lugar certo em estações de televisão tem vindo a aumentar, de resto. A extinção do tandém José Sócrates - Pedro Santana Lopes deu lugar não apenas à manutenção de Santana Lopes num outro contexto mas também à vinda de Manuel Maria Carrilho e de Pacheco Pereira, isto nos canais «clássicos». No cabo, o SIC-Notícias tem, de segunda a sexta-feira, na sua Edição da Noite (a partir das 22 e 30), diversas equipas de pares, isto é, de duas personalidades políticas de quadrantes opostos, que travam um diálogo contraditório acerca dos temas da actualidade. Anuncia-se agora, para a RTP 1, um novo programa de debate político em que estarão representados PSD, PS, PCP, PP e BE. Faça contas quem estiver para aí voltado e verificará que o número de comentadores políticos em exercício na televisão portuguesa se aproxima da dúzia e meia. Sendo que, entre eles, os comunistas serão uma estreita minoria que, de resto, sempre estará em risco de encontrar quem a queira tornar tão silenciosa quanto possível.

O tempo a voltar p'ra trás

Entretanto, e voltando à conversa havida no passado domingo entre Pacheco Pereira e Clara de Sousa, quero registar que em dado momento ouvi por lá qualquer coisa que numa primeira fase me fez cair em pasmo e numa fase subsequente me colocou em estado de alerta. Falava-se das queixas formuladas por Freitas do Amaral perante a sua eliminação da história do CDS-PP por obra e graça de Paulo Portas e, nesse passo, alguém fez o diagnóstico: era o «complexo de esquerda» do dr. Freitas do Amaral. Primeiro fiquei varado: de esquerda, Freitas do Amaral?! Depois, entendi: estamos a regressar ao tempo em que, sob os critérios de Salazar, murmurar que a guerra mata dava direito a ser-se considerado um perigoso agente de Moscovo. De há uns tempos para cá, Freitas do Amaral diverge uma vez ou outra da mais dura linha da direita transnacional: acusa de ilegitimidade a intervenção NATO/USA contra a Jugoslávia, faz o mesmo perante a invasão do Iraque, distancia-se da gestão Bush e afirma publicamente que preferiria uma outra condução norte-americana do mundo. Paralelamente, escreve uma peça de teatro sobre o movimento estudantil dos anos 60 e uma outra acerca de Viriato, um que combateu o Império, ainda que o romano, já que o americano ainda vinha longe. Também escreve uns artigos com que o dr. Portas decerto não concorda. Perante tudo isto, ai Jesus que o homem é de esquerda!
A gente até pode encontrar uma explicação: o melhor é começar já a torpedear o dr. Freitas, não vá passar-lhe pela cabeça candidatar-se a Belém, a uma presidência que se quer reservar para o já canonizado dr. Cavaco, se tanto lhe apetecer, ou para o dr. Santana, a quem o lugar muito apetece e já informou ter abandonado alguns estouvados maus costumes. E que, além disso, precisa, coitado. A questão que a esta crónica mais interessa, porém, é a verificação de que a multiplicidade de comentadores políticos na TV pode multiplicar a possibilidade de, por essa via supostamente autorizada e idónea, se multiplicarem também as inverdades, as imposturas, as calúnias, então com um imaginário selo de seriedade. A acontecer, isso não será consequência da diversidade, que é sempre boa, mas da falta de seriedade, que é sempre má. E contra a qual temos nós, telespectadores em princípio crédulos, de nos prevenirmos.


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