Nenúfar no charco, de Avelino Cunhal

Uma escrita modelar, um romance inesperado e intemporal

Domingos Lobo
De Avelino Cunhal conhecemos o pícaro mordaz, a agudeza metafórica dessa magnífica colectânea de contos que é Senalonga, livro que só por si mereceria atenta e demorada análise, não apenas pelo estilo satírico (herdado do Eça, de Camilo, de Aquilino) mas pelo novo que essa escrita imprime na desmontagem de uma realidade rural que era tudo menos plácida e ingénua, visão contrária, portanto, ao que o idealismo burguês de Júlio Dinis profusamente desenvolveu e difundiu. A mordacidade cósmica da escrita de Avelino Cunhal denuncia em Senalonga, com desarmante humor, os peralvilhos, os oportunistas e os demagogos de todos os quilates. O conto sobre a inauguração de um urinol público é paradigma dessa argúcia, desse derribado humor.
A crítica pouco tempo e espaço dedicou à análise da obra de um escritor que foi parco em títulos publicados – o referido Senalonga e Areias Secas, este último publicado pela Caminho em 1980 (14 anos após a morte do autor, ocorrida em 1966) e uma colectânea de 3 peças de teatro em 1 acto, saída numa colecção da Prelo, dirigida por Luís Francisco Rebello.
Se historicamente o realismo social se inicia em 1928 com a publicação de Emigrantes, de Ferreira de Castro, o certo, e como afirma Alexandre Pinheiro Torres, o neo-realismo, como nova abordagem estruturada da realidade portuguesa através da literatura, só começa a ter expressão consequente a partir do Congresso do Partido Comunista, realizado em Moscovo em 1934. Na sequência das teses saídas do conclave, os intelectuais portugueses marxistas desenvolvem uma profícua acção doutrinária em torno das várias revistas literárias que surgem nesse mesmo ano: Gleba, Gládio e o jornal O Diabo, em Lisboa, a Outro Ritmo, no Porto e a revista Ágora, em Coimbra. Três anos mais tarde, em 1937, surgirá, no Porto, a influente revista Sol Nascente.
Ora, 1934 é precisamente o ano em que Avelino Cunhal inicia o romance Nenúfar no Charco, que viria a terminar, segundo notas escritas pelo autor no manuscrito original, em 1935, em Lisboa. Não se lhe conhecem, à época, colaborações nas revistas citadas, mas sabe-se que colaborou no jornal O Diabo, do qual o seu filho Álvaro foi, igualmente, colaborador e, posteriormente, na Vértice e na Seara Nova.
Não querendo excluir este romance – e único – de Avelino Cunhal dos primórdios inaugurais do nosso neo-realismo, o certo é que ele se afasta, nas suas coordenadas estético-filosóficas mais actuantes, do movimento, se denotem impressivos nesta escrita a vibração política, a denúncia da miséria e da situação social, a crítica subtil, mordaz, aos dogmas do catolicismo, ao seminarismo retrógrado e salazarento, (de resto, uma crítica cara aos intelectuais republicanos) a visão dorida, mas de grande sagacidade, sobre um país que se encontrava à beira de mudança de ciclo. A voz de Avelino Cunhal é, nessa expositiva denúncia, sempre corajosa e assertiva. Esta posição desassombrada e consciente por parte do autor, de desafio, de afrontamento às normas censórias então definidas pelo fascismo nascente, que impunha um eufemístico exame prévio aos textos de ficção, estará certamente na razão de este romance notável ter permanecido inédito até hoje.
Ao longo das mais de trezentas páginas do texto, Avelino Cunhal ignora os referentes ao tempo histórico em que a acção decorre. Quer um leitor participativo, agente desperto do narrado, que descodifique os sinais, que os interprete de forma activa e crítica. Seguindo o exercício introspectivo sugerido pelo autor, fácil se torna constatarmos que o período temporal deste romance se situará entre os finais do século XIX e os últimos anos da monarquia, iniciando-se a saga de Olívio Oliva numa vila beirã (a Seia natal do autor) e terminando em Lisboa já nos alvores da República. Tal como acontece em Senalonga, Avelino nunca nomeia em Nenúfar no Charco a sua vila de origem, limitando-se a breves referentes, situando-a nas abas de uma grande serra, no coração do País.
De igual modo, não sendo detectável neste romance, ao contrário do que acontece nos textos posteriores, uma postura ideológica claramente consonante com o ideário neo-realista, o certo é que ele já reflecte, de forma inequívoca, os espectros sincrónicos da decadência do liberalismo oitocentista, e claros sinais que inferem da rejeição de algumas das propostas avançadas pelo socialismo idealista de Antero. É este método imposto à estrutura narrativa que conduz o autor por caminhos que denotam já um conhecimento do marxismo enquanto método crítico de análise social.

Um humanismo de novo tipo

Ao construir um personagem atormentado com a sua própria indefinição existencial, (estamos em crer que o autor foi, na abordagem psicológica de Olívio, influenciado por Dostoievski) que a custo de uma aprendizagem dolorosa consigna a sua força moral e cívica, Cunhal recusa, por essa via, o humanismo burguês proudhoniano, percorrendo mais sólidos caminhos que tocam, em desassombro reflexivo, no plano social e ético, os parâmetros estruturais da criação literária neo-realista, recusando igualmente, nessa construção dialéctica evolutiva, a visão estreita e fatalista de Oliveira Martins. Não era ainda o neo-realismo ortónimo, mas é certamente um humanismo de novo tipo que Avelino Cunhal inaugura com este livro, estabelecendo ao mesmo tempo a ruptura com a herança oitocentista e opondo-se claramente às derivas anti-sociais e conservadoras que o modernismo propunha.
O léxico de Avelino Cunhal, nomeadamente quando descreve os trabalhos do campo, a apanha da azeitona pelos frios de Dezembro, as durezas das tarefas dos padeiros, a matança do cabrito pela Páscoa, é de uma riqueza semântica notável, sem nunca ceder a regionalismos redundantes, sem incursões especulativas, antes inscrevendo-lhe a rudeza instintiva, elementar das gentes beirãs, esmaltando-lhe o estilo, remoçando-o, recuperando o falajar do povo serrano, com uma curiosidade chã, sem deslumbramentos e introduzindo-o naturalmente na narrativa, tal como Aquilino Ribeiro o usou.
É neste registo dual que a intencionalidade da sátira se vai aos poucos diluindo, transformando-se numa escrita mais pungente, mais intimista, e as cambiantes de luz e sombra ganham expressão mais visceral e o olhar céptico do autor endurece, permanecendo, a um tempo, introspectivo e distanciador, não deixando que o texto resvale para um excesso de dramaticidade que, por vezes, o percurso da narrativa parece tentado a exibir. Atento a essa condicionante, Avelino Cunhal nunca se deixa arrastar pelas variantes estilísticas comuns ao romantismo, antes vai polvilhando a narrativa com os determinantes mais impressivos do seu tempo, do sentimento decadentista de Baudelaire, mas próximo do impressionismo de Cesário, caldeado pelo gosto, pelo apelativo encantamento mágico e fortemente poético que encontramos, p. ex. em Laforgue.
Assim, o realismo de Cunhal, perpassado pelo olhar impressionista com que descreve as obsessões e os delírios da personagem principal, os seus avanços e recuos pelas veredas do mundo, tornam, por vezes, este processo discursivo refém de pulsões metafísicas, introspectivas e poéticas, próximas dos romancistas realistas russos, como Tolstoi e Dostoievski, abeirando-se desse modo do pós-simbolismo.
Nenúfar no Charco, exprime, de forma metafórica, algumas das derivativas que a crise de 1929 (em sentido moral, republicano e laico) inculcaram no campo das doutrinas literárias mais atentas e comprometidas, levando alguns autores, como refere Óscar Lopes, «à revalorização do realismo» e a uma «literatura de crítica social». O aparecimento de livros como A Crise do Progresso, de Friedmann, A Consciência Mistificada de Henry Lefebvre e Gutermann e, sobretudo, A Condição Humana de Malraux, foram determinantes para as mudanças do paradigma.
Podemos considerar, portanto, que embora inscrevendo neste romance as coordenadas da grande tradição romanesca herdada do século XIX, Avelino Cunhal não foi alheio aos movimentos sociais e estéticos posteriores e, naturalmente, aos aspectos políticos mais relevantes ocorridos no período em que este romance estaria em gestação: o retrocesso civilizacional e político que a queda da 1.ª República veio operar na orgânica democrática do País, a crise social provocada pelo crash de 1929, a queda da ditadura de Rivera em 1930 e a esperança que a República em Espanha significou.

Um romance actual e necessário

Ao autor interessa mais a denúncia, o alertar para as mazelas sociais, que a compaixão. É da dignidade do humano, da sua intrínseca natureza, que este romance do autor de Senalonga, demoradamente nos fala. É contra a falta de solidariedade, contra a indiferença, contra o egoísmo, o salve-se quem puder, que esta escrita se ergue apelativa e corajosa. É, nestas derivativas principais, um romance actual, urgente e necessário. A dignidade da nossa condição, e as vozes que corajosamente o afirmam, são sempre arautos do nosso tempo e connosco viajam: são um afinado coro na voz unívoca de um povo clamando justiça.
Avelino Cunhal possui aquilo a que João Gaspar Simões chamou «o realismo da dúvida». O autor diegético assiste e interroga-se, mesmo quando lhe sentimos a mão solícita que, à beira dos abismos, salva Olívio da perdição sem retorno. A mão que conduz Olívio pelos esconsos labirintos do mundo, seus medos e avarismos, o deixa ver com clareza a pungência do sórdido até à indignação. E é esse sentimento de indignação que o levará a rejeitar ser delator, a submeter-se «à lei dos caminhos feitos» por um prato de lentilhas. Faz-se republicano, e será, nessa opção de percurso e de vida, finalmente, um homem, o homem que o pai sempre duvidou que ele um dia conseguisse ser – mas um homem inteiro, solidário, íntegro. Não me recordo de texto tão exaltante e empolgado sobre a República e as suas figuras tutelares, desde os textos de memórias do José Gomes Ferreira, como o que o autor inscreve nos capítulos finais deste incontornável romance.
Em Avelino Cunhal, tal como em Aquilino, detectamos uma certa «bonomia céptica», herdada de Anatole France, que consegue, nos períodos mais fecundos da conjuntura narrativa, prodígios singulares do manifesto linguístico. É essa expressividade, ligada ao realismo social que o configura, que liga este romance ao neo-realismo, porque formula e questiona a moral hegeliana e assume o futuro como forma de redefinição, não apenas individual, mas colectiva face ao real avassalador.
Olívio arranja trabalho como tipógrafo. O seu destino irá refazer-se, regenerado, limpo de sombras e de dúvidas. O futuro está ali, nos inflamados discursos daqueles heróicos republicanos que ele admira e segue. Sabe, enquanto tipógrafo, ter nas mãos um instrumento que lhe permitirá agir para transformar a sociedade, que Avelino Cunhal antevê novo e diferente. O futuro afigura-se-lhe límpido como o céu de Lisboa onde ele, pela primeira vez, consegue vislumbrar estrelas. Um prospectivo sinal de outro devir.
A publicação deste romance notável é um acontecimento editorial da maior relevância que aparece inesperado e em contra-ciclo, face à triste realidade que é hoje o grosso da nossa produção editorial, que privilegia o mediático, o tontinho, o soporífero, e «essa literatura desnacionalizada, francizante, de que se atulha a praça», de que falou Aquilino. Nenúfar no Charco será um livro estranho, bizarro, «desafinado no coro da actual ficção portuguesa», e ainda bem. Este livro será, para as possidonísticas almas que dominam nos média ditos de referência, esses «autómatos do dono a funcionar barato», como escreveu Almada, esses guardiães do esbulho, um livro a evitar, a fazer de conta que não existe. Mas acautelem-se essas piedosas criaturas: este livro existe, resistiu em silêncio longos 74 anos, mas está aqui, vivo, actuante, corajoso, intacto no seu grafismo, na sua ortografia original, tal como o autor no-lo deixou, nas ilustrações a tinta da china que são outra e suplementar linguagem. Pronto para incomodar, tão actual hoje, nas premissas que infere, como em 1935 – pronto a enfrentar o mesmo bloqueio, os mesmos medos (embora a carapaça censória seja hoje mais cínica e hipócrita) – pronto a denunciar, a romper o cerco de estupor que o gerou.
Nenúfar no Charco e um romance intenso, admirável, intemporal – pronto para o futuro.

BIBLIOGRAFIA
História da Literatura Portuguesa – Óscar Lopes, António José Saraiva
O Neo-Realismo Literário Português – Alexandre Pinheiro Torres – Moraes Editores
A Cena do Ódio - José de Almada Negreiros – Obras Completas – Editora Estampa
Terras do Demo – Aquilino Ribeiro - Bertrand
O Leitor Hedonista – Rui de Azevedo Teixeira – Editora Huguin
Colóquio/Letras nº.82
Senalonga – Prelo Editora; Areias Secas – Editorial Caminho e 3 Peças em 1 Acto – Prelo Editora, de Avelino Cunhal
Nenúfar no Charco – de Avelino Cunhal – Edição Leitor – Lisboa/2009


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