Notas de uma viagem ao Tibete

O tecto do mundo não cai

Leandro Martins
Lhasa estende-se mansamente por um vasto planalto, a 3600 metros de altitude. Olhada de um pouco mais acima, das janelas do palácio de onde o Dalai Lama a podia ver sem levitar, é uma cidade que se pode abarcar em toda a sua extensão, morada e local de trabalho de cerca de 300 mil pessoas, rodeada da cinza de montanhas erodidas por um sol inclemente, muito mais altas ainda. É a capital da Região Autónoma do Tibete, uma região tão grande como os maiores países da Europa Ocidental juntos, nada menos que um milhão e duzentos mil quilómetros quadrados.
Mas antes de entrarmos em números, que na China são sempre exorbitantes e significativos, diremos que uma viagem como fizemos ao Tibete, no pino do Verão que findou, teria sido, meio século atrás, uma aventura quase impossível de realizar. E que hoje é ainda encarada com a prudência e a preparação que exige uma região a que chamam com justeza «o tecto do mundo».
Embora servido por rápidos e modernos meios de transporte, o Tibete não deixa de ser uma vasta região de montanhas erguidas numa rede inextricável, de planaltos e vales profundos, situada numa altitude média de quatro mil metros. Durante os dois dias que permanecemos em Pequim, onde nos foi dado receber uma diversificada e profusa informação sobre a realidade actual, a nível social, económico, político, e cultural dos lugares que iríamos visitar, também nos foram dispensados alguns conselhos úteis sobre como lidar com a altitude. Sem esquecer as misteriosas pílulas para melhorar a circulação sanguínea, pequenos milagres da medicina tibetana, que permitem resistir à rarefacção do oxigénio naquelas altitudes. É que uma coisa é subir a Serra da Estrela e respirar lá em cima com a sensação de frescura e de leveza; uma coisa, muito diferente é sentir, no Tibete, que o ar não chega para as encomendas do corpo… No hotel em que ficámos, em Lhasa, não faltavam umas garrafinhas de oxigénio.

Lugar es­pe­cial

As condições específicas do Tibete ditam para a Região Autónoma – como de resto para todas as outras vastíssimas regiões da China – políticas específicas, tendo em conta a realidade concreta de cada uma, a sua história e cultura, as suas capacidades económicas e o seu desenvolvimento social. É desse modo que nos pareceu que as autoridades centrais chinesas encaram a questão do desenvolvimento do país no seu todo. Enquanto que na imprensa ocidental se procura fazer passar a ideia de que o Tibete é uma região oprimida cujo povo aspira à independência liderada pelo inefável Dalai Lama, a realidade não podia ser mais diversa. Basta atentar na História e recordar que o Tibete é, desde há mais de sete séculos, parte integrante do país. E também que foi um imperador sentado no trono de Pequim, quem atribuiu há pouco menos de duzentos anos ao primeiro Dalai Lama, da seita Gelug do budismo, os atributos da «reincarnação», sendo o actual Dalai o 14.º dessa estirpe que manteve a região no feudalismo mais retrógrado, baseado não apenas na servidão como na escravatura. Topo de uma hierarquia de senhores feudais que exploravam o trabalho, dispunham das vidas dos camponeses e recorriam a atrozes «castigos» como o de arrancar os olhos ou amputar os membros do prevaricador, o Dalai usava ainda o obscurantismo religioso para coroar o seu domínio sobre toda a sociedade e assim manter sossegado e servil o território sob a autoridade do imperador de toda a China. Aliás, a religião, como sempre assim foi ao longo de séculos, está hoje a ser usada para a consolidação dos poderes ou para a sua desestabilização. Raramente é utilizada na paz e abundantemente serve os propósitos da guerra. Na China, novos focos de tensão são ateados pelo imperialismo, desta feita numa outra região onde a população segue a religião do Profeta.
Quase todos os tibetanos com quem tivemos oportunidade de conversar durante a visita haviam tido e conhecido pais ou sobretudo avós escravos ou servos nas propriedades feudais. Quando o exército popular, vitorioso em 1949, depois de ter rechaçado os japoneses e ganho às tropas de Chang Kaichek, iniciando na China a revolução socialista, o Tibete continuava dominado pelo feudalismo. Depois de alguns anos de alguma tolerância e de procura de entendimento com as classes dominantes, procurando atraí-las à reforma social, a resistência destas levou o Governo Central, em 1959, a impor a Reforma Democrática. Em 1965 foi fundada a Região Autónoma do Tibete.
É natural que ainda hoje subsista um grupo restrito, rodeando o Dalai Lama, que desenvolva a intriga diplomática e a acção terrorista, como a desencadeada em Lhasa em Março do ano passado. Mas, face à liberdade e dignidade adquiridas com a Revolução Socialista e ao progresso registado nas últimas décadas, só o comando e o financiamento das agências do imperialismo têm a capacidade de organizar e levar avante operações de tal envergadura. O apoio declarado do imperialismo norte-americano e o mais disfarçado apoio dos estados europeus que pretendem manter os seus negócios e, ao mesmo tempo, enfraquecer a China estão por detrás das destruições e vandalismos então praticados em Lhasa.
É certo que as autoridades chinesas pretendem separar – e separam – o imperialismo norte-americano da atitude mais «compreensiva» da União Europeia. Mas o facto é que a Europa, no sistema imperialista que domina o mundo, é submissa e dependente do poder dos Estados Unidos e que, por muito boas vontades que aparente nas suas relações com a China, não deixa de participar activamente na campanha de incensamento do Dalai Lama através do poder de classe que partilha com os proprietários dos meios de comunicação ao serviço a ideologia dominante, fonte de propaganda do imperialismo e dos seus objectivos. O papel de concorrente que a China desempenha no plano económico a nível internacional – é hoje a economia do mundo e o primeiro país exportador, ultrapassando a Alemanha – não augura nada de bom, e os empecilhos ao seu desenvolvimento vão continuar a surgir, cada vez mais agressivamente.

A mo­der­ni­dade

Os habitantes do Tibete são poucos para tão vasto território. Apenas dois milhões e oitocentas mil pessoas ocupam os planaltos e os vales, onde a agricultura é a principal actividade. Noventa e cinco por cento da população é tibetana e o resto é partilhado por cerca de quarenta minorias étnicas. Mas a ideia que se faz da Região, baseada nos lugares comuns dos documentários e das «divulgações» avulsas, desvanece-se de encontro à actualidade. Enterrado o feudalismo, chegada a modernidade com os novos transportes e comunicações, o Tibete já não é uma terra isolada do mundo. Claro que a maioria do povo trabalha a terra e segue o budismo religiosamente. Mas a poliandria, ainda admitida para as famílias idosas que tradicionalmente a praticavam, é agora interdita e as mulheres já não escolhem dois maridos, como antes era. Claro que ainda se vai de peregrinação a Lhasa, rodando nas mãos a roca da oração e vestindo tradicionalmente. Nas proximidades do Palácio, as filas de peregrinos parecem-nos subitamente como índios dos Andes, com os seus curtos chapéus, as vestimentas de lã, as cores dos adornos e, sobretudo, a pele vincada e escurecida pelo sol das altitudes, as tranças negras das mulheres e os atarracados troncos que o ar rarefeito amplia para captar mais oxigénio.
Mas, tal como em Pequim, os milhões de bicicletas que aguardavam no semáforo o sinal de avançar, desapareceram como por encanto e os carros rodam nas amplas avenidas, atravessam viadutos e pontes elevadas e os transportes públicos correm velozmente como se nunca houvesse horas de ponta, também as estradas em redor de Lhasa, e a via que liga o aeroporto da capital da Região, amplo a fazer inveja ao projecto de Alcochete, são lugar de velocidade e daquela maneira tipicamente chinesa de conduzir, reduzindo sempre o trajecto e fazendo as curvas por dentro, como se os sinais de trânsito fossem desenhados apenas para estrangeiro ver. Nem um acidente. Mas atravessar a avenida na passagem de peões é verdadeira aventura. Em Lhasa tudo é moderno e todavia vincadamente rural, com as longas ruas e avenidas bordadas de comércio variado: não é preciso mudar de bairro para adquirir os mais variados bens – de vitualhas a rações de animais, de calçado a pronto a vestir, de bebidas a tubagens para canalizações, de televisores a janelas de alumínio prontas a montar. Mas, em vez de azáfama, tranquilidade sob o sol escaldante.
Nos campos em redor, a água é abundante e as plantas produtivas, os talhões divididos por canas onde fremem bandeiras de papel às cores que fazem lembrar festas populares mas são apenas sinais budistas protectores. O gado vai pastando nos prados verdes. Tudo é verde, rodeado das montanhas silenciosas e nuas, a rocha acinzentada ou cor de camurça, ou violeta conforme a inclinação da luz. A protecção da Natureza é uma preocupação das autoridades e visitámos mesmo um extenso parque ecológico onde a directora nos explicou as experiências que ali levam a cabo. Damos conta de que no Tibete, as mulheres ocupam muitos lugares de direcção. Na escola básica, também era uma mulher que a dirigia. Ali fomos recebidos, antes da visita a várias classes e turmas, onde cada professor tinha a seu cargo meia centena de crianças disciplinadas e interventivas, numa sala onde vi a única bandeira com a foice e o martelo que pude observar durante dez dias na China, entre Pequim, Lhasa e Xangai. No fim de quase uma semana no Tibete fomos recebidos pela ministra da Comunicação do Governo Autónomo, que nos instou a contar a verdade do que víramos. Assim fazemos, depois de lhe termos dito que a nossa voz de comunistas é pouca na batalha ideológica que travamos na Europa.
Os chineses elogiam muito as três últimas décadas, a que chamam de Abertura e de Reforma. Com ela privatizaram quase metade da economia do país. Hoje não são apenas as chamadas «zonas especiais» que estão abertas à iniciativa privada, quer estrangeira quer de capital misto – algumas de tecnologia exclusivamente chinesa – quer simplesmente nacional. Do ponto de vista estritamente económico, os resultados são fabulosos. E também no Tibete, onde a iniciativa privada prevalece tanto na agricultura como nas outras áreas produtivas, esses resultados se fazem sentir, aumentando em consequência o nível de vida das massas e, ao mesmo tempo, permitindo a acumulação de fortunas particulares. Todos os indicadores mostram uma franca ascensão, embora em 2008, em consequência da crise capitalista, o crescimento, apesar de elevado, tenha registado alguma quebra. No que toca à agricultura, porém, o rendimento per capita cresceu, de 178 yuan em 1978 para 3176 em 2008 (o yuan equivale a uma décima parte do euro, mas o poder de compra relativo faz com que na China seja uma moeda forte).

Três ver­tentes

Para além do desenvolvimento dos transportes – Lhasa é servida por dez linhas aéreas e um comboio ultramoderno foi inaugurado recentemente, obra de engenharia extraordinária tendo em conta o relevo do território – que ligam o Tibete ao resto da China e ao mundo e também das comunicações e telecomunicações, com 40 canais de televisão, a vida social sofreu espantosas modificações. Assim será em toda a China mas, devido às especificidades do Tibete, o povo tibetano é tratado com especial desvelo. Enquanto no resto do país ainda não está assegurado a todos o acesso à segurança social e aos cuidados de saúde e se constata a existência de cerca de 40 milhões de pobres – em 1400 milhões é obra! – o Tibete é excepção. Toda a população beneficia de segurança social e cuidados médicos. O ensino é gratuito, para além do básico e obrigatório. A iliteracia foi reduzida a um por cento, quando, em 1951, apenas um por cento era escolarizada. A esperança de vida passou dos 35 anos para os 67. Por outro lado, as autoridades mostram-se orgulhosas das liberdades religiosas, com a restauração de mais de 20 grandes templos budistas que haviam sido destruídos durante a chamada Revolução Cultural. Em Pequim, um professor de tibetologia de um dos cinco institutos do género que ali trabalham, revelou-nos que existem mais de 1700 locais de culto e cerca de 46 mil monges, tendo mesmo sido criada uma licenciatura teológica que prepara os jovens para seguir tal «carreira».
O governo central segue atentamente os problemas e os progressos realizados no Tibete. No caso da protecção do ambiente, foram investidos 2600 milhões de yuan e a indústria é limitada porque o sistema ecológico da região é demasiado frágil, segundo nos explicaram. A grande aposta no desenvolvimento do Tibete tem, como nos afirmaram, três vertentes principais – a agricultura, o turismo e a medicina tibetana.
No Hospital de Medicina Tibetana de Pequim, onde fomos recebidos por um par de médicos, tivemos ocasião de vislumbrar o que será uma consulta. Tomando o pulso de um paciente, demorando-se um pouco enquanto conversa, o médico diz a um - «essa tensão anda um bocado alta»; e a outro - «há quanto tempo tem essa dor nas costas?» Mas não é o espectacular nem o insólito que esta medicina persegue, sem se substituir à clássica medicina científica ocidental, dispondo embora de numerosas e variadas curas realizadas sobretudo a partir de plantas e outras substâncias naturais.
Quanto ao turismo, pelo que nos foi dado ver e apesar das excelentes instalações hoteleiras, conta ainda com poucos visitantes ocidentais mas com bastantes turistas oriundos de toda a China. E, sendo certo que os monges não levitam e assim se pode perder um espectáculo que os mitos eternizaram, o Tibete esconde ainda magia suficiente para atrair muita gente a ver a realidade para além da insidiosa propaganda ociental.
Sobre a agricultura já aqui demos uma ideia da sua preponderância na economia da região. Visitámos algumas residências de camponeses que vivem e trabalham nos arredores de Lhasa – supomos evidentemente que mais longe da capital regional as condições não sejam tão generosas – e tivemos oportunidade de observar o desafogo das habitações onde moram as famílias que trabalham no campo, com as suas salas profusamente decoradas na tradição tibetana onde se impõe sempre uma grande televisão a cores. Nos pátios, entre os vasos de plantas de estimação, há sempre um curioso aparelho que só vimos naquelas terras altas, composto por um tripé de metal onde se montam dois painéis côncavos que captam os raios do sol e os fazem convergir num suporte para pendurar uma cafeteira ou uma panela, onde ferve a água. Dessa água se faz, por exemplo, o chá de jasmim temperado com manteiga de iaque. O cheiro do jasmim e da gordura de iaque, misturados ao odor acre do incenso nos templos, há-de ficar na nossa memória como o particular perfume do Tibete.


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