Comentário

Referendo abusivo

Natacha Amaro
Amanhã o povo irlandês volta a ser chamado a pronunciar-se sobre o tratado de Lisboa, por via de um referendo que a Constituição do país obriga. A resposta nesse referendo é uma oportunidade única para tentar travar esta ofensiva, já que mais nenhum povo europeu foi ouvido na ratificação deste tratado, e a sua importância está bem patente nas mais diversas e profundas pressões a que este povo tem estado sujeito.

História de um Não

A definição de referendo digna de dicionário – «direito que em certos países assiste aos cidadãos de se poderem pronunciar sobre certos assuntos de interesse nacional ou local; consulta ao povo e sua resposta por meio de votação sobre matéria constitucional ou legislativa de interesse nacional» – ganha na Irlanda contornos quase surreais. O bom exemplo que obriga institucionalmente a ouvir o povo perante uma alteração de fundo nas regras que regem o país, teve no caso irlandês um desenlace inacreditável. É que esta regra primordial de ouvir o povo só se aplica (ou aceita!) se o dito povo der a resposta que o capital quer ouvir.
Explicando melhor uma história que, mesmo repetida até à exaustão, continua a escapar à generalidade dos fazedores de opinião da nossa praça: o povo irlandês disse Não ao tratado de Lisboa em 12 de Junho de 2008, com uma resposta expressiva de 53,4 por cento. Como essa não era a resposta que os senhores da Europa pretendiam ouvir e depois de um ano de pressões e tentativas de resolver o problema criado com a resposta «errada», amanhã os irlandeses vão novamente pronunciar-se sobre a matéria, a ver se desta vez já soa melhor aos ouvidos dos autoproclamados líderes da Europa.
O povo irlandês decidiu, legitimamente, que não queria um tratado que impõe o aprofundamento do federalismo (iniciando a criação de um super-estado, com um Presidente do Conselho Europeu em vez das presidências rotativas ou um Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança que conduz a política externa e de segurança comum da União), do militarismo (ao prever que os estados-membros coloquem à disposição capacidades civis e militares de modo a contribuir para os objectivos definidos pelo Conselho, sempre em estreita articulação com os objectivos da NATO) e do neoliberalismo (dando à União competência exclusiva em domínios como o estabelecimento das regras de concorrência no mercado interno, a conservação dos recursos biológicos do mar, a política comercial comum ou a política monetária para os estados-membros cuja moeda seja o euro). Amanhã terá que decidir outra vez.

Pressões e democracia

Nos tempos que correm, em que tantas vezes se denunciam os ataques à liberdade e à democracia – prontamente rechaçados com um «lá estão eles, sempre com a mesma conversa...» –, esta situação da Irlanda é paradigmática. Como à primeira o povo mostrou que não há um só rumo para a Europa, sem que com isso venha mal ao mundo, avança-se para medidas mais drásticas. E este último ano foi pródigo nas mesmas. Depois de voltas e voltas a tentar desenterrar um tratado que democraticamente estaria sempre morto, porque foi legalmente rejeitado, eis que surge a ideia peregrina, apesar de não ser nova, de voltar a referendar o mesmo assunto e as mesmas pessoas. Se acrescentarmos à «história» deste referendo um Governo em apuros num dos países europeus mais atingidos pela recessão e a crise, então, é possível calcular o alcance das pressões, chantagens e fraudes impostas aos irlandeses. Temos empresas a fazer campanha pelo Sim (por vezes envolvendo comissários europeus!), Durão Barroso visitou o país e prometeu ajudas específicas para milhares de desempregados, o primeiro-ministro irlandês e o seu Governo fazem acções de campanha diárias, entre muitas outras formas de impor claramente (o sub-reptício não funcionou muito bem em 2008...) o único resultado que aceitam, o Sim.
Perante métodos tão baixos e meios tão desiguais, o povo resiste. As últimas sondagens indicam que a abstenção está a descer e que diferença entre o sim e o não diminui mantendo-se, no entanto, o sim em vantagem.
Daqui deste canto da Europa, onde nos foi negado dizer de nossa justiça sobre este mesmo tratado e o futuro de todos nós, envio uma saudação e uma mensagem de solidariedade com o povo irlandês que terá amanhã que enfrentar, pela segunda vez, a fúria inexorável dos caudilhos de uma construção europeia atentatória dos direitos do povo e da democracia.


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