A guerra exige propaganda

Correia da Fonseca
1. São decerto muitos milhares os telespectadores que, à míngua de melhor, buscam em canais distribuídos por cabo, ou mesmo nos quatro canais terrestres que são uma espécie de ementa mínima, filmes produzidos ou não para os circuitos comerciais da indústria cinematográfica. Com um bocado de sorte, sobretudo se a busca não ocorrer nas horas de maior audiência, poderão ver ou rever filmes já com alguns anos e, por isso mesmo, não sintonizados com as linhas temáticas actualmente dominantes. Porém, não será excessivo dizer que a regra geral não será essa: sem sequer tentar rigor na contagem, direi que a maioria dos filmes que nos são despejados em casa obedece ao quase sagrado tríptico que está na moda: sangue, explosões e terrorismo. Os dois primeiros elementos do tríptico não constituem propriamente novidade, é sabido que desde há muito a TV negócio elegeu a bruteza em geral e a brutalidade ensanguentada em especial como artigos de grande êxito comercial no mercado, mas o terrorismo como tema constante é uma inovação surgida nos últimos tempos. Escusado é dizer que não por acaso. Sempre a indústria mediática norte-americana, fornecedora principal ou mesmo exclusiva dos canais a que me refiro, serviu para mobilizar a opinião pública contra alvos que se foram sucedendo ao longo do tempo. Foram os anos em que (não o esqueçamos porque é uma memória didáctica) séries made in USA nos mostravam como audaciosos agentes norte-americanos se infiltravam para lá da Cortina de Ferro para libertarem santíssimos sacerdotes injustamente postos em cativeiro pelos comunistas do Leste. Ou em que os maus eram crudelíssimas criaturas com caras de chineses ou equiparados, ou sujeitos que falavam castelhano em países da América Latina submetidos a ditaduras avessas ao doce sabor da democracia tal como ela é entendida em Washington e arredores. Agora, porém, a tónica é outra. Mais a condizer com «os interesses norte-americanos em qualquer parte do mundo», para usar aqui uma fórmula oficial ou pelo menos oficiosa. Agora o que é preciso é concitar o ódio dos cidadãos dos Estados Unidos em primeiro lugar, do restante Mundo Livre logo a seguir, contra o terrorismo, esse fantasma que se dá como percorrendo o mundo em geral e ameaçando os lares norte-americanos em especial. O ódio contra ele, e também o medo, mola irracional que abre os caminhos da agressividade sem limites porque sempre supostamente justificada.

Mobilização geral

Como decerto facilmente se entende, esta abundância de maquinações terroristas que visam cometer os mais atrozes e sanguinários crimes contra os pacíficos States e os seus cidadãos consubstancia de facto uma preparação psicológica das opiniões públicas para que aceitem, até com conveniente entusiasmo, operações de guerra, e de guerra preventiva, em qualquer parte do planeta onde supostamente os facínoras se acoitem. Alguém disse ontem, invocando documentos que afinal ninguém viu, ser no Iraque que a ameaça mais forte se sediava? Pois lá foram os rapazes USA matar e morrer para abortarem o perigo. Afinal é no Afeganistão? Lá estão as forças do Ocidente Livre e Democrático a tentarem, por sinal com escasso êxito, eliminar o famigerado monstro talibã, por azar não há muitos anos carinhosamente alimentado a biberão pelo mesmo Ocidente, e também a Al Qaeda, ao que consta ali instalada. Anote-se de passagem que esta organização macabra, a Al Qaeda, é de tamanha ajuda na legitimação das políticas de guerra norte-americanas que se não existisse daria muito jeito inventá-la. De qualquer modo, sejamos realistas e percebamos a lógica dos que mandam no lado de lá do Atlântico: as coisas são como são, as acções militares dos Estados Unidos custam muitas vidas e muitos milhões, mas a actividade bélica é indispensável para a economia norte-americana que, aliás, como se sabe não anda nada bem. Sendo assim, os efectivos poderes fazem a sua escolha: mais vale a morte de milhares que o agravamento da doença de que a economia norte-americana já padece, coitada. Logo, a conveniência das injecções televisivas que, de tão insistentes e «realistas», assegurem o medo que facilmente se transmuta em ódio. É, em verdade, o Império a proceder a uma psicológica mobilização geral das gentes. O que tem uma espécie de reverso: são as gentes a necessitarem de aviso para que não se deixem alistar enquanto, desprevenidas, preenchem horas de lazer visionando filmes supostamente inocentes.


Mais artigos de: Argumentos

O compasso de espera...

Anunciadas que foram oficiosamente as alterações ao texto da Concordata, um novo manto de silêncio voltou a recair sobre o assunto. Sabe-se, entretanto, que os poderes reconhecidos à Igreja Católica foram muito ampliados e que ficou aberta uma janela por onde hão-de passar novas e contínuas reivindicações do...

Que política de C&T <br>para a saída da crise?

As diferentes situações por que vão passando as sociedades implicam - como é natural pensar - diferentes ajustes nas políticas mais adequadas à sua evolução e, nomeadamente, a um seu multilateral desenvolvimento.Implicada por esta afirmação encontra-se em posição destacada, mesmo central, a Política de Ciência &...