A tentação da ignorância

Correia da Fonseca
Num breve momento promocional do livro e da leitura, Fátima Campos Ferreira surge no ecrã a dizer, por outras mas equivalentes palavras, que seria absurda uma emissão do «Prós e Contras» tendo a leitura como tema. «-Porque», diz ela, «a leitura só tem prós».Tem Fátima muita razão, sobretudo se se presumir que a frase não se refere a prospectos publicitários de bruxos e adivinhos, às legendas inçadas de erros de algumas séries e às palavras sempre um pouco tontas ou apenas inúteis que figuram nos outdoors da drª. Manuela Ferreira Leite, Tem, pois, muita razão, mas não parece que a sua opinião seja também a da empresa em que trabalha, a RTP. De facto, ao longo de muitos anos e maus, a operadora pública de televisão tem dado permanentes sinais de ter pelos livros um enorme desdém, tanto e de tal ordem que remete para um canal de audiência menoríssima, o RTPN, um programa acerca de livros e escritores em que a vedeta acabará muito provavelmente por ser um funcionário da casa, José Rodrigues dos Santos. Quanto ao programa «Grandes Livros», decalcado num formato estrangeiro (o que, sendo para uma boa causa, não tinha nada de censurável, bem pelo contrário), foi sepultado ainda em suposta vida nas funduras da «2», e aí terá falecido em asfixia por total falta desse peculiar oxigénio que é, em televisão, o olhar dos telespectadores. Dir-se-á que repescar para estas colunas um assunto que não é de ontem nem de hoje, longe disso, apenas porque uma destacada telejornalista veio dizer-nos uma enorme verdade que a RP ignora é aparente indício de falta de assunto. Mas, na verdade, não é tanto assim. Fundamentalmente porque o autêntico boicote à leitura e ao livro que a RTP pratica é, mais que um escândalo público, um permanente atentado contra o interesse nacional. O caso é que pode o gosto da leitura estar em decadência ou a cair em desuso designadamente entre os segmentos mais jovens da população, mas o boom de ignorâncias várias que esse fenómeno implica, apenas superficialmente disfarçado por saberes da área tecnológica ou conhecimentos apenas recolhidos muito pela rama, ameaça tornar tudo muito difícil. «Tudo», isto é: não só a sobrevivência física num planeta cada vez mais perigoso, mas também a construção de sociedades onde o quotidiano não seja um galope para a desumanização. Viver num mundo, viver entre gentes, implica entender gentes e mundo. E os livros ensinam isso.

Um punhadinho de ideias

Ainda que o fastio da leitura possa ser difícil de entender a quem há muito adquiriu o hábito de ler, é um facto que essa espécie de doença atinge milhões e que a televisão, mais as formas de comunicação «fast» de que ela foi predecessora, ajudam à maleita. E é aqui que surge o que pode ser talvez a grande ameaça: substituindo o efectivo entendimento das pessoas e das situações por formas convencionais, repetitivas, como que moldadas em plástico, a TV medíocre (isto é, a que domina os fluxos televisivos diariamente fornecidos ao domicílio) substitui o conhecimento do mundo por uma limitada colecção de mitos cuja aceitação «facilita as coisas». Para muita excelente gente, ter um modesto punhado de ideias na cabecinha é não apenas suficiente para os gastos diários, que são limitados, como é também um motivo de sossego que não apetece perturbar, e esse sossego é apenas um sistema organizado de ignorâncias consubstanciadas em enganos, em crendices, em preconceitos, tudo muito tentador porque cómodo. Ora, como bem se sabe, os livros ensinam, desmascaram imposturas, ajudam a ver e entender pessoas e coisas, fenómenos colectivos e a estrutura das sociedades, começam talvez por injectar dúvidas e acabam muitas vezes por rasgar caminhos para convicções. Como ao longo de séculos foi muitas vezes repetido por santos homens, «os livros são o diabo», e por isso contra eles foram construídas as diversas censuras quando não a total proibição dos que não sejam santificados. Neste quadro, dir-se-ia que a televisão pública portuguesa herdou esse santíssimo entendimento e, por isso, foge dos livros como o diabo da cruz (quando muito, atira-os para a «2», velho sótão que poucos visitam). Pratica a recusa da inteligência de que os livros são veículo e adere à tentação da ignorância convencida. É duvidoso que por este caminho, mais outros que com ele convergem, sirva o interesse nacional que tem de justificar-lhe a existência.


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