Entrevista a Marcos Ana

«Digam-me como é uma árvore»

Hugo Janeiro
De passagem por Portugal para apresentar o livro onde conta experiências comuns a muitos milhares de antifascistas que lutaram pela liberdade, a democracia e o socialismo, Marcos Ana (Fernando Castillo), o prisioneiro que mais tempo seguido passou nos cárceres franquistas, testemunhou, em entrevista ao Avante!, que a luta contra a barbárie capitalista e pelo socialismo é um combate incessante, cheio de futuro e ao qual vale a pena dedicar a vida. Mesmo quando as mais duras condições de isolamento e tortura procuram quebrar a resistência e os anos vão varrendo da memória coisas simples como a geometria de uma árvore, há algo nos milhares de homens e mulheres como Marcos Ana, independentemente da sua nacionalidade, que perdura: a dignidade revolucionária, a confiança nos camaradas e a esperança na possibilidade de construir uma sociedade sem exploradores nem explorados.

«Há situações limite em que só a dignidade revolucionária te vale»

Avante!: Aos seis anos, foste com os teus pais para Alcalá de Henares, nos arredores de Madrid. Guardas algumas memórias anteriores?

Marcos Ana
: Muito pouco. Recordo-me da viagem. De um camião com todos os móveis e do meu pai me colocar no topo. De ficar muito impressionado com a estação de comboios, com a agitação, as linhas, o ruído das máquinas. Lembro-me ainda dos costumes da minha família, do cheiro das maçãs da minha terra e da pobreza da minha casa.
São talvez as recordações mais nítidas que mantenho e tenho a certeza que só as recuperei numa das vezes que me iam fuzilar. Enquanto descia as escadas até ao local, durante os cerca de dois minutos de trajecto, vi o filme da minha vida como se estivesse a olhar por um caleidoscópio, fruto da perspectiva da morte iminente.
Retenho muito mais recordações da minha adolescência, sobretudo devido ao início do meu envolvimento político, vivido sempre com muita intensidade e numa profunda contradição.

Contradição entre a crença em Deus e na expiação dos pecados, e a ânsia de justiça que nascia quando olhavas para a vida dura que levavam os teus pais, como explicas no teu livro. Foi isso que te levou a contactar as Juventudes Socialistas?

Os meus pais e eu vivíamos o catolicismo com fervor. Como havia sido criado nesse ambiente, educado num contexto de crença religiosa, as actividades políticas em que comecei a participar desencadearam uma fase de contradição interna, em que o passado, o presente e os sonhos de um futuro melhor estavam em reboliço.
Durante o dia cumpria com zelo e entusiasmo as minhas tarefas revolucionárias, mas à noite a força do hábito levava-me a rezar. Era a contradição entre a militância política por uma outra sociedade e as penitências a que me obrigava a crença religiosa. Que pecados podia cometer um moço de 15 anos que justificassem tanta penitência? Começou a não fazer sentido. Foi um período difícil mas que superei com realismo, com a minha própria experiência e com a das pessoas que conheci.
Quanto ao contacto com a Juventude Socialista, o que aconteceu foi que eu ia com outros rapazes distribuir propaganda católica, uma das vezes ouvi falar um dirigente juvenil. Parecia que falava de mim e da minha família. Identifiquei nas palavras daquele comunista a vida em minha casa, a miséria, a desigualdade.
Pouco a pouco fui permanecendo mais tempo junto dos comícios, fui formando opinião e identificando o que se dizia e discutia com o que conhecia. Pouco depois entrei na Juventude Socialista.

No teu livro relatas o episódio, ocorrido já quando estavas encarcerado, de uma conversa com um padre que te questionou porque é que cantavam os condenados à morte? O diálogo que tiveste com ele foi de alguma forma o diálogo que tinhas tido contigo próprio, anos antes, e que concluíste optando por dedicar a vida a um ideal que busca na terra a felicidade, a igualdade e a justiça entre os homens?

Sim. Certo dia, um sacerdote de Toledo visitou o pátio dos condenados à morte (os que estavam com a Pepa, expressão para a qual até fizemos uma canção) e ficou muito espantado porque estávamos a cantar. Quando nos obrigaram a formar reparou em mim porque sempre aparentei menos idade. Perguntou-me o que é que um adolescente ali estava a fazer. Eu respondi que estava condenado à morte. Então porque tens essa alegria? - continuou. Porque sou comunista - respondi.
Dali iniciámos várias conversas, aos domingos, quando visitava os condenados à morte, os quais, estranhamente para ele, não se arrependiam, pelo contrário cantavam, esperançados de que havia um futuro melhor.

Na tua adolescência viveste também a implantação da República. O que recordas dessa época?

Tinha 11 anos quando foi implantada a República. Ainda não pensava politicamente, pelo que para mim era algo festivo, com a praça de Alcalá de Henares cheia de gente. Recordo que a minha irmã me comprou uma boina e uma bandeira, e que os meus pais me obrigaram a escondê-las, aterrados de medo.

Só depois, com a militância, as tarefas de comissário político e instrutor, já durante a Guerra Civil, é que viveste as transformações e a luta pela República com outra maturidade.

Claro, até porque nessa época já tinha optado por ser comunista. Para mais, os fascistas mataram o meu pai em Janeiro de 1937, durante um bombardeamento. A minha reacção foi, no dia seguinte, dirigir-me ao Partido Comunista e pedir uma ficha de inscrição. Não me queriam aceitar porque era ainda muito jovem. Tive de explicar que já pertencia à Juventude Socialista, mas que queria aumentar o meu compromisso.
A partir daí ingressei noutra escola, por pouco tempo, porém, porque assim que regularizaram as forças militares da República voltaram a enviar-me para a Juventude Socialista Unificada, a organização que nasceu da unificação entre jovens socialistas e comunistas.
Na JSU fui responsável pela organização de Alcalá de Henares até cumprir 18 anos. Entrei então para o exército, e como os fascistas tinham morto o comissário político da unidade para onde fui destacado, elegeram-me como novo comissário da brigada. Era jovem, tinha facilidade em falar com os nossos soldados e com os soldados das trincheiras contrárias. À noite, com um megafone na mão, explicava aos soldados franquistas porque é que lutávamos, e porque é que Franco os fazia lutar a eles.
Quando terminou a guerra, fomos para o Porto de Alicante porque diziam que todos os elementos com tarefas políticas tinham que fugir.
Barcos franceses e ingleses ficaram de nos resgatar. Claro que nunca vieram, e em vez deles apareceram navios da frota fascista, e, por terra, a Divisão Littorio, enviada por Mussolini. Dali levaram-nos para o campo de concentração de Albatera, no qual começa o meu percurso prisional.

Pouco falas do conflito propriamente dito. Porque não abordas mais a questão no teu livro?

Falo de algumas coisas, mas nunca quis fazer deste livro a minha experiência na Guerra Civil, até porque não estive em nenhuma batalha decisiva. Estive em Madrid e ali o impasse militar estava criado. Havia escaramuças, mas nada de determinante para o curso da guerra. O Pedro Almodóvar, que está a preparar um filme com base neste livro, diz que vai relatar a Guerra Civil sem tiros.
Penso que olhando para a minha experiência é mais importante abordar as consequências da derrota da República para os jovens, os comunistas, o povo espanhol. No livro falo de homens, famílias inteiras a quem sugaram os melhores anos de vida, a quem roubaram a juventude encerrando-os entre quatro paredes.

Dignidade revolucionária

Nas tuas passagens pelos cárceres franquistas, que ilustras de uma forma cativante, a dignidade revolucionária acompanha sempre o relato de cada episódio, pesem as humilhações, as torturas, os maus-tratos continuados, persistentes, castigadores, a arbitrariedade, a barbárie…

A dignidade é sempre o mais importante. Há situações limite com que te confrontas em que só a dignidade revolucionária te vale.
Numa ocasião, que me valeu precisamente a segunda condenação à morte, levaram-me para ser torturado por ter assumido que era o responsável por um boletim que circulava na prisão. Claro, os fascistas sabiam que não podia ser o único, havia tipos de letra diferentes, o que indicava que vários camaradas estavam envolvidos naquele trabalho político em concreto.
Brutalizaram-me ainda com maior severidade porque entenderam que era uma provocação da minha parte assumir tudo sozinho. A dada altura pensei que tinha duas formas de resolver o problema: ou denunciava e sabia que não conseguiria olhar nos olhos dos meus camaradas, e que por isso passaria a ser um mero ocupante daquele espaço; ou voltava e podia abraçá-los de cabeça erguida, digno, mesmo que me destroçassem. Tiveram que me dar comida à boca durante 40 dias.

Essa dignidade, os fascistas procuravam destroçá-la de várias maneiras, falas nisso com detalhe no teu livro.

A missão dos guardas prisionais e dos torcionários era de impedirem a fuga física e quebrarem a resistência, a dos capelães era impedirem a fuga espiritual. Só sonhar era já proibido.

Para manter essa dignidade, recorria-se aos mais variados esforços. Relatas que durante uma série de sessões de tortura em que te debatias para resistir, os camaradas fizeram-te chegar um retrato de Lénine e que isso te revigorou.

Ajudou-me muito, como digo no livro, porque compreendi que já não estava só, que ele e tudo o que significava estaria ao meu lado quando voltasse a enfrentar os verdugos.
De regresso à cela falava com o retrato: «Olha camarada, como me deixaram. Mas descansa que saberei defender o partido», dizia. Como Lénine lutou, também eu tinha que lutar. Esse relato está inclusivamente no Mausoléu de Lénine, em Moscovo.
Depois, quando percebi que outro camarada estava em apuros, passei-lhe o retrato. Precisa mais que eu naquela altura e foi igualmente o que o salvou.

O medo e a solidão são para ti os principais inimigos do prisioneiro político?

São. A primeira vez que fui condenado à morte estava em Madrid numa espécie de camarata. Ali não havia celas. Juntavam os condenados numas salas improvisadas e todos os dias levavam grupos de camaradas para serem fuzilados. Não os voltávamos a ver. Só ouvia-mos os vivas à República, ao comunismo e tudo mais. Isso marca-te muito em termos de vivência colectiva e relação com o medo.
Na prisão, um condenado à morte na nossa situação desenvolve capacidades extraordinárias. Acreditas que tinha todos os ruídos classificados? Sabia quando os passos eram de um carcereiro ou de um carrasco. Quando os guardas vinham, noite após noite, para levar mais um grupo de condenados, a certa altura eu já sabia, só pela posição dos lábios, se o guarda ia dizer Ramón, Pedro, ou outro nome qualquer. É incrível as faculdades humanas que as situações limite aperfeiçoam.
Muitos camaradas escreveram as suas memórias e valorizam o trabalho colectivo, a resistência. Como digo no livro, durante o dia a tua principal preocupação é não fazer desafinar a orquestra que formas com os teus companheiros, mas depois, à noite, quando te tapas com a manta, ficas contigo mesmo, com os anos perdidos, com a família.
E com o medo, também. Por isso digo que o limite do medo é a dignidade. Todos temos medo. Como não? Estão-te a levar para a execução, tens medo, é evidente. Mas eu vi muitos camaradas que seguiam com as pernas a tremer, mas dando vivas à República.

A poesia é uma arma

A partir de Burgos, que no livro explicas que era a prisão onde a ditadura passou a concentrar os quadros políticos mais destacados, fazes sair clandestinamente os teus primeiros poemas. O que procuravas com a poesia?

Primeiro era uma fuga para a mente, mas depois, com a publicação dos meus poemas, com a sua passagem clandestina a outros camaradas em várias partes do mundo, com o conhecimento que mais pessoas foram tendo do Marcos Ana, os poemas contribuíram para o aumento da consciência, para o esclarecimento sobre a situação dos presos políticos espanhóis.
Por outro lado, esse reconhecimento permitiu-me, depois de ter sido libertado, continuar a trabalhar pelos que o fascismo mantinha encarcerados. Mais que apenas uma fuga, foi um instrumento no combate à ditadura.

Apesar dos 23 anos seguidos na prisão, dizes que o mais difícil foi regressar à liberdade. Porquê?

Houve camaradas que acumularam mais anos de prisão que eu, pois saíam, voltavam à clandestinidade, eram presos, e assim sucessivamente. No meu caso foi muito difícil regressar à liberdade uma vez que, na verdade, a prisão era já a minha área natural.
Para que se perceba, o meu nervo óptico foi-se acostumando a espaços curtos, verticais. Quando sai tive que ter paciência até conseguir olhar para distâncias mais longas, espaços mais amplos que as paredes da prisão, senão vomitava, ficava mal-disposto. Depois as crianças, as mulheres, os hábitos desconhecidos, tudo me custou muito.
Os anos de vida prisional fazem-te esquecer coisas simples como a geometria de uma árvore, como refiro no poema La Vida. O cárcere impõe-se como único protagonista dos teus dias e noites.
Já depois de estar em liberdade, durante muitas anos, as noites continuavam a ser da prisão. Todos os dias, quando passava num café ou num local público, via sempre um camarada que tinha sido executado, ou outro que tinha deixado na prisão. Sempre, sempre os seus rostos.

Esse compromisso com os que ficaram presos depois de saíres, em 1961, levou-te a um combate sem tréguas até à libertação de todos. De tal forma que logo em 1962, no Congresso Mundial da Juventude, em Moscovo, um camarada já comentava - «lá vai o Marcos com os seus presos às costas». Verdade?

Sim (risos). Meses depois de sair da prisão aproveitei a oportunidade de estarem jovens de todo o mundo reunidos na União Soviética para explicar, de delegação em delegação, a necessidade da criação, em cada país, de comités de solidariedade para com os presos políticos espanhóis.
Tive e tenho o privilégio de viajar, conhecer pessoas, lugares, contactar com camaradas, conhecer outras realidades e lutas. Quando vou a qualquer lado sou o Marcos Ana, todos são gentis, fazem-me homenagens. Mas eu tenho algum pudor em colher louros, porque não esqueço que existiram e existem milhares de pessoas cujos rostos e nomes são anónimos para a maioria de nós, mas que, como eu, dedicaram e dedicam a vida ao ideal revolucionário. São todos esses, em qualquer parte do mundo, que devem sempre ser homenageados e que merecem ser enaltecidos, não o Marcos Ana.
Eu sou um filho da solidariedade que a retribui aos que dela precisam.

Para que nunca mais aconteça o fascismo

Em Espanha decorre um intenso debate sobre a memória histórica a propósito de uma lei que diz visar a sua preservação e, simultaneamente, ultrapassar as «feridas do passado». Qual é a tua opinião?

A nossa campanha pela memória histórica tem como objectivo dar a conhecer o que se passou em Espanha durante a ditadura. Um dos objectivos do meu livro é dar a conhecer aos jovens uma parte central do passado recente do país. Há agora um movimento em Espanha chamado «Memória e Liberdade», e que é constituído por netos e netas de fuzilados. Só recentemente souberam que os avós haviam sido assassinados. São como a maioria dos jovens que me escrevem ou com tenho oportunidade de falar a propósito do meu livro – não são politizados. Não te falo em serem comunistas ou socialistas. Não são nem informados nem politizados.
Há os que querem reescrever a história, mas há, também, os que pretendem ocultá-la com o argumento de que «o que passou, passou». De acordo, passou, mas não impeçam os que não conhecem a história de fazerem o seu juízo e tirar as devidas ilações depois de a aprenderem nas universidades e institutos. Só depois de saber o que se passou durante a ditadura é que cada um pode «virar a página», como dizem.
Não se podem apagar 40 anos de ditadura fascista. Não se pode negar o conhecimento do alfabeto de horror fascista às novas gerações. Isso é criar condições para que a história se repita.

Falas do desconhecimento dos jovens a respeito da ditadura fascista. A dimensão da mortandade provocada pelos fascistas é parte desse desconhecimento. No teu livro lembras as execuções que se prolongaram durante anos, e dos muitos não arrolados oficialmente porque eram executados fora das prisões.

Às mãos dos falangistas, que encostavam as pessoas a uma parede onde quer que fosse. A direita espanhola, quando afirma que «houve atrocidades de ambos os lados» está a dizer uma barbaridade. Uma coisa foram os primeiros meses de descontrolo, com uma República ainda por consolidar e a autoridade por estabelecer em todo o território. E mesmo considerando acontecimentos que lamentamos não há comparação com o que aconteceu depois.
As execuções dos fascistas depois de terminada a Guerra Civil foram, pelo contrário, um genocídio frio, calculado. Os caminhos encontravam-se pejados de cadáveres, como testemunharam então dois jornalistas ingleses. A Praça de Touros de Badajoz ou a tragédia de Málaga são meros exemplos do que foi uma prática aplicada em todo o território.
Tentar fazer a chamada «justiça salomónica» é, por isso, uma aberração. Nós, comunistas, socialistas, republicanos, não queríamos a guerra. A guerra estorvava o nosso verdadeiro objectivo de construção de uma sociedade de progresso, justiça, democracia, igualdade. Foram os fascistas que provocaram a guerra. Não posso aceitar que sejamos «todos culpados».


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