O preço

Correia da Fonseca
Sobretudo no canal História, mas não apenas nele, a TV tem-nos falado muito, nos últimos tempos, da Guerra Civil de Espanha. Não surpreende: completam-se este ano setenta anos sobre a derrota militar da República e, o que é ainda mais relevante e grave, o «processo» da Guerra Civil e da ditadura franquista nunca foi completamente encerrado pelos anos da chamada «transição democrática» que se seguiu à morte do ditador. Aliás, a direita que herdou os «valores» do franquismo e tanto quanto pôde os contrabandeou para as estruturas políticas do actual sistema democrático bem pode sustentar, aberta ou implicitamente, que esta democracia em cujo topo está um rei obviamente não eleito é de facto uma dádiva do ditador, uma sua última vontade, o que naturalmente deve apontar para um reflexo de gratidão por parte do povo alegadamente beneficiado. Trata-se, já se vê, de uma completa inversão de valores, e por isso bem se compreende que o tal processo se tenha mantido em aberto no quadro de uma Espanha democratizada por última condescendência de um ditador que morreu com as mãos encharcadas de sangue. Dizendo-o de outro modo, diremos que mesmo depois da morte de Franco subsistiu em Espanha um problema de resolver, um agudo espinho cravado no país. Quando José Luís Zapatero, o primeiro-ministro cujo avô republicano foi fuzilado pelos fascistas de Franco, fez publicar a lei dita da Memória Histórica, mais não fez que abrir uma espécie de túmulo selado mas mal fechado de onde se desprendiam odores fétidos que setenta anos de paz militar e trinta anos de democracia parlamentarista não haviam dissipado.

Esquecer o inesquecível

Terá sido por efeito dos setenta anos volvidos sobre a vitória de Franco e da ainda recente publicação da Lei da Memória Histórica (cuja mais mediática consequência foi a polémica acerca da exumação dos restos mortais de Federico Garcia Lorca) que «Câmara Clara», o programa que Paula Moura Pinheiro apresenta nos serões dos domingos da RTP2, escolheu a Guerra Civil de Espanha, o tempo e modo da democracia espanhola e a Lei da Memória como assuntos largamente dominantes da sua mais recente emissão. Presentes no estúdio como convidados estavam dois historiadores especialmente interessados pelos temas em exame, o português Manuel Loff e o espanhol José Maria Vidal, e ambos fizeram intervenções muito positivas, um e outro convergindo na rejeição e condenação do franquismo e divergindo apenas, direi que por vezes até timidamente, em pontos que aparentaram ser secundários. De entre estes, porém, houve um ou outro que me suscitaram dúvidas, que me pareceram ter importância, que talvez até me tenham «caído mal», expressão esta que utilizo pedindo perdão pelo tom de alguma arrogância que pode sugerir. Assim, não me pareceu nada bem, nem justa, nem inócua, a tendência que a dado passo me pareceu detectar para «compensar» os crimes do franquismo, quer durante a guerra quer ao longo das décadas que se lhe seguiram, com os excessos sem dúvida também criminosos praticados pelo lado republicano, propiciados e estimulados pela situação de guerra entre 36 e 39: era, além da avaliação paritária entre uns e outros que esquecia o seu desequilíbrio factual (aliás apontado em dada altura por um dos intervenientes) omitir o peso esmagador da responsabilidade dos que se haviam levantado de armas na mão e ferocidade nos actos contra a República sufragada em eleições «free and fair», como hoje se diria. Mas não me pareceu melhor o que, com razão ou sem ela, se me afigurou ser alguma condescendência para com a tendência que preconizou, e decerto ainda preconiza, o «virar de página» sobre os anos de guerra e as décadas de repressão brutalíssima, isto é, o esquecimento e uma «reconciliação» que se parece muito com uma estratégia de impunidade e uma despolitização da opinião pública.
Alguém no programa referiu, porventura citando uma terceira voz, que o que o povo quer é Paz, e é verdade. Porém, não parece ser especialmente digno que se queira que o povo aceite a Paz pelo preço inaceitável que seria não só a impunidade dos crimes, porventura já garantida pelos anos decorridos, mas também o esquecimento deles. Na verdade, espanta e repugna que só agora, mais de trinta anos depois do regresso da democracia, seja derrubada a última estátua (ridiculamente equestre) erigida para glorificar o «Caudilho pela graça de Deus». E que topónimos de homenagem ao fascismo e aos fascistas espanhóis ainda sujem as esquinas de cidades e vilas de Espanha.


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