Contas de um longo rosário

Jorge Messias
Nas estratégias do eixo igreja/política/dinheiro os protagonistas alteram posições e formas de intervenção de acordo com as condições do momento. No actual quadro social este princípio é evidente.
Nos anos das «vacas gordas», os heróis que tinham entre mãos o fio condutor eram políticos, tecnocratas e banqueiros. A Igreja resguardava-se sabiamente num prudente e bem defendido quase-anonimato. Limitava-se a ver, calar e partilhar os lucros com os seus parceiros.
Depois veio a crise e as falhas estrondosas da globalização: desemprego, falências, derrocada económica, promessas não cumpridas. Logo as posições relativas dos protagonistas se alteraram. Os comandos e o poder de decisão voltaram às mãos dos bispos. Os políticos, sem alternativas viáveis, procuram agora não dar nas vistas. Cedem o passo à igreja. Quanto aos banqueiros, esses procuram apagar o passado e manter e ampliar o seu «pé de meia» milionário. Assim será enquanto a crise durar.
A Igreja Católica representa para o capitalismo uma tábua de salvação. Só ela possui meios e ideologia capazes de atenuar o inevitável clamor da indignação popular. E todos os actores deste eixo sagrado compreendem a gravidade e a extensão que vai assumir, a curto prazo, a «revolta dos vencidos», dos que perderam o emprego, a estabilidade e a esperança.
É esta a chave que permite compreender a reviravolta a que assistimos, nomeadamente na comunicação social. Enquanto a palavra de ordem gravitava em torno da globalização, do sucesso, do crédito fácil, do défice público ou da auto-estima, a igreja quase só aparecia na TV nas missas dos domingos ou, nos jornais, nos calendários litúrgicos. Depois, quando a crise se impôs e deixou de poder ocultar-se, não se abre um jornal, não se ouve um programa de rádio ou se sintoniza um canal televisivo que a igreja não esteja aí. Não só através das prolongadas celebrações litúrgicas mas também em tardes inteiras ocupadas pela «sociedade civil», em mesas-redondas protagonizadas por padres e leigos, em programas para a juventude subordinadas a associações juvenis católicas ou a movimentos escutistas confessionais, a acções sociais das misericórdias ou das paróquias, etc..

O trabalho de formiga

Preto no branco, a Constituição da República proclama que em Portugal há separação entre a Igreja e o Estado. Mas é legítimo o cepticismo de muitos cidadãos que não identificam na prática esta separação e constatam que, frequentemente, é a Concordata que prevalece sobre a Constituição laica. Muitos ministros de Sócrates são agentes da fé. O Opus Dei e a banca católica dispõem de meios financeiros e de influência política esmagadora. O próprio Chefe do Estado percorre o país preparando o terreno para a entrega às organizações caritativas da Igreja dos sectores sociais mais pobres e sensíveis aos efeitos da crise. Age numa atitude missionária.
Em pleno início da crise, o «eixo dos milagres» está prestes a dar um passo em frente que é altamente perigoso para a democracia. Tentemos resumir a situação.
A extensa área da segurança social representa para o Governo um peso morto e para a igreja um alvo a atingir. No entanto, tanto o Estado como a Igreja reconhecem a importância estratégica desse universo que é pedra de toque dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É aí e no trabalho que se decidirá o futuro político do País.
Logo, entre a igreja e o Estado há questões complexas de organização que têm de ser resolvidas em comum. Algumas já terão encontrado solução, outras não. Por exemplo, o Estado tem o dinheiro mas falta-lhe vontade política para cumprir a Constituição. A igreja controla centenas de IPSS e Misericórdias que em grande parte funcionam ainda descentralizadamente. Importa, em primeiro lugar, criar um comando único a que todas obedeçam. Centralizar para ganhar eficiência.
Neste sentido, na área das instituições de solidariedade, o trabalho vai muito avançado. Uma estrutura central forte orienta as principais IPSS, as Misericórdias e as Mutualidades. Há, também, uma identificação total entre o Ministério da Segurança Social e o movimento das instituições caritativas. Mas a reestruturação do Voluntariado católico tem um atraso relativo. E a forte estruturação do voluntariado é de importância vital.
Este assunto impõe uma exposição mais detalhada. A ele voltaremos.


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