A universidade e o espírito científico (*)

Francisco Silva
Tem-se discutido ultimamente quanto baste, no nosso País, o papel a desempenhar pela Universidade relativamente ao conjunto da «Sociedade». E isto, tanto visto desde o lado da Sociedade para a Universidade, visto pela Sociedade como se a Universidade fosse uma «externalidade» para a qual tem de pagar imposto, de uma Sociedade que possui costas largas e homogéneas – na verdade existem os poderes dos dominantes e as classes em contradição, que ditos «pós-modernos» há mais de vinte anos afirmam ter desaparecido –, como visto desde de dentro das próprias Universidades para fora dela, para a Sociedade – uma observação efectuada pela parte que se interessa por estas coisas de entre mestres e discípulos da Universidade.
Quanto aos governos e aos líderes de opinião – os permanentes e os que episodicamente são chamados a desempenhar tal função –, em particular nesta fase socrática, o problema principal reside em cortar verbas. Cortar ou atrasar a libertação de verbas pelas «melhores» razões: diminuir os défices orçamentais do Estado, o que no caso da Universidade é feito à custa de actividades de promoção da tão incensada Sociedade do Conhecimento (cortes, «contenções», cujo objectivo é libertar fundos e mais fundos para o sector possidente da Sociedade, enfim o que se chama equilibrar as contas públicas), estimular o desenrascanço de angariação de fundos «a todo o custo» por parte dos professores universitários, desenvolver através de «choques» o sistema de C&T deste nosso jardim à beira-mar plantado, transferir verbas vultosas para universidades estrangeiras e, argumento final, acabar com os calões, que também os deve haver, como em todos sectores e todas partes – aliás, para diminuir com eficácia as calacices, estes poderão não ser os métodos mais adequados. Enfim, os mesmos argumentos para todos os sectores vitais de prestação de serviços à população: Educação, Saúde e Segurança Social.

A ci­ência como ob­jec­tivo

Vem isto a propósito de uma reflexão a que fui levado pela leitura da brilhante Oração de Sapiência pronunciada por Orlando Ribeiro (OR) – intelectual com quem o escrevente destas linhas teve a dita de privar – na Sessão de Abertura Solene de Universidade Clássica de Lisboa, em 1949, isto é, quando ainda arrancava a actual Revolução Científica e Tecnológica.
O título dessa clássica intervenção foi «A Universidade e o espírito científico» e nela, ao entrar no assunto nuclear, OR afirmou já então: «Seja qual for o âmbito que se pretenda atribuir à Universidade, sejam quais forem os caminhos que se abram à sua função social e à sua influência na nossa vida colectiva, a Ciência figura sempre como seu objectivo fundamental. É por intermédio da iniciação científica que ela pode actuar na formação da juventude; é por meio da actividade investigadora dos professores que ela contribui para melhorar os recursos técnicos do País e aumentar o património de saber comum a todas as Nações civilizadas».
Mas mais. Referiu mais adiante que «o professor há-de criar à sua volta uma atmosfera de camaradagem e uma comunidade de ideal científico. Claro que esta acção não é possível apenas pelas chamadas aulas magistrais, a que alguns entendem dever reduzir as suas funções docentes, mas pelo convívio prolongado com os colaboradores, discípulos e estudantes, no laboratório, no centro de estudos, no museu, no campo, onde quer que a sua acção possa exercer-se. Entende-se que a um professor deste tipo sobeje pouco vagar para outras ocupações, renunciando a procurar fora do ensino e do estudo, largas compensações materiais».
Isto já foi dito há 60 anos. Entretanto, sobretudo nos últimos 30-40 anos, a Universidade cresceu imenso em Portugal. A nova situação causa engulhos a muitos dentro e fora dela, que teriam preferido que tudo ficasse como liliputianamente estava, que uma porção apreciável dos professores não tivesse alinhado na luta por uma mudança do tipo da preconizada por OR. Não compreendem nem querem aceitar os seus necessários custos, mas que são indispensáveis a uma caminhada para fora de um atoleiro de que não há meio de o nosso País sair. Gostariam que a Universidade continuasse a ser para meia dúzia e que muitos destes não utilizassem mais do que lápis e papel para aprenderem umas regras de Direito ou umas coisas de gestão de empresas ou quase só receitas de engenharia. Mas perderão essa guerra…

(*) Tí­tulo da Oração de Sa­pi­ência pro­nun­ciada por Or­lando Ri­beiro na Sessão de Aber­tura So­lene de Uni­ver­si­dade Clás­sica de Lisboa, em 1949.


Mais artigos de: Argumentos

As «almofadas» do capitalismo

Apesar das promessas palavrosas o défice público português galopa, ninguém sabe ao certo quantos desempregados há no País e toda a economia nacional bate no fundo. Alastra a corrupção pública e, embora relutante na informação dos factos, a investigação criminal traça o panorama de uma nação que rapidamente mergulha num...

António supermacho

Quando anunciada, pôde supor-se que «A Vida Privada de Salazar», mini-série da SIC, viria ser mais uma contribuição para o branqueamento da figura do ditador, na esteira do teleconcurso pretensamente plebiscitário havido há uns tempos. Logo depois, contudo, as imagens promocionais que a estação transmitiu puderam...