Nas ruínas

Correia da Fonseca
No passado domingo, uma reportagem da TVI, dessas com que as estações parecem querer fazer prova de que também são capazes de fazer bom jornalismo, levou-nos numa espécie de visita guiada aos lugares de Lisboa onde o que foram habitações desceram à condição de tugúrios decrépitos. Situam-se geralmente nos bairros velhos, habitados por velhos a vários títulos indefesos que ali não esperam mais que a morte por já terem entendido que nada mais há a esperar. As casas onde ainda sobrevivem há muito que perderam condições de habitabilidade, são antigas com rendas antigas, quase sempre de valor insignificante no quadro do actual custo de vida, o que desencadeia por parte dos proprietários lamentos e protestos. Na verdade, porém, muitas vezes seria caso para nos perguntarmos se os que ainda ali moram, impossibilitados por motivos vários de conseguirem encontrar outro lugar para com dignidade e sem grande sofrimento aguardarem o fim, e ali morando enfrentam frequentemente o risco quotidiano de que sobre eles desabe um tecto ou sob os seus pés se afunde um soalho, não deveriam receber uma indemnização mensal em vez de pagarem um aluguer. Quem lha pagaria é uma outra questão, já se vê, e é claro que este modo de colocar as coisas é apenas uma forma de sublinhar que aquelas casas já não têm nada a ver com o direito à habitação que está consignado não apenas na Constituição da República mas também na Carta dos Direitos Humanos tantas vezes invocada estrategicamente pelos fariseus que nunca pensaram seriamente em respeitá-la na sua integralidade. O certo é que lugares daqueles são, disse-nos a reportagem, dezenas de milhares na capital deste nosso País que costuma gabar-se de ser democrático, e que cada um deles ofende a nossa convicção de sermos cidadãos de um Estado civilizado.

A trincheira inaceitável

Não se duvida de que a extrema degradação do chamado parque habitacional de Lisboa, para apenas de Lisboa falarmos porque a reportagem da TVI não visitou outros lugares, constitui um problema enorme de solução extremamente difícil, mesmo que parcelar. Contudo, impressiona que seja deixado esquecido ao longo dos anos, excepto naturalmente pelos que habitam aquelas ruínas, como se a resolução encarada seja esperar que o tempo vá dizimando os condenados na expectativa, aliás muito provavelmente realista, de que a esmagadora maioria sucumba a breve prazo à acção conjunta da idade e da insalubridade das casas. Para mais, a aparente escolha desta «solução final» vai obviamente ao encontro do interesse dos proprietários que, vendo-se livres de inquilinos indesejáveis que pagam rendas minúsculas (e em muitos casos esquecidos de que aqueles mesmos fogos, com a tais rendas agora tornadas irrelevantes, se pagaram a si próprios ao longo das décadas em que os valores relativos eram bem outros) se vêem finalmente em condições de negociarem as propriedades que até então não foram mais que um património estéril se não embaraçoso. Bem se pode dizer que a morte do inquilino é, em muitos casos, fundamentado motivo para que o proprietário dê graças ao Céu, e bem se vê que esta situação não é muito simpática no plano moral. Mas esta é apenas mais uma razão, e razão secundária e de algum modo complementar, para que o Estado, quer directamente quer por intervenção municipal, faça alguma coisa mais do que esquecer, omitir ou, quando o assunto eventualmente lhe seja lembrado, exibir um ar penalizado e confirmar o que alega ser a sua impotência. O fundamental e que não pode ser contornado é que os órgãos do Estado democrático não podem, entrincheirados na alegação de extremas dificuldades, optar definitivamente por nada fazerem enquanto cidadãos agonizam entre ruínas. A reportagem da TVI foi suficientemente clara e explícita para que, em muitos momentos, o telespectador minimamente sensível e solidário se sentisse tocado por um sentimento de horror. Trata-se, é certo, de um horror suscitado por situações que não são novas, de que quase sempre já se ouviu falar embora um pouco vagamente porque ver, mesmo que só através de uma câmara de televisão, é outra coisa e tem uma outra força. Perante aquele documento, alguém com responsabilidades deve responder. Sob pena de cometer uma espécie de crime por abstenção.


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