Um dia em Pequim (1)

Francisco Mota
Para as minhas jovens amigas Yusha e Yumeng, para que vivam num mundo e numa China mais justa e fraternal.

O meu amigo Wang esperava-me à porta do hotel. Eram 7 da manhã. Era sábado. Um sábado de Outono que se anunciava de agradável temperatura e, coisa extraordinária, de céu limpo e azul. Íamos passar um dia a ver Pequim (ou Beijing) com outros olhos e noutros sítios, diferentes dos habituais.
O primeiro sítio, foi um dos inúmeros mercados de legumes, que começam a funcionar antes das 6 da manhã. Costumam ser pequenos, ao ar livre e, no meio duma confusão bastante grande, vemos as bancas com alho francês (fundamental na cozinha chinesa), couves, pepinos, couve-flor, brócolos, pimentos, milho mole, batata doce, batata normal (pouco usada), cogumelos de várias espécies, fungos das árvores, feijões, favas e ervilhas com casca. Dióspiros, maçãs, laranjas (com mais de um quilo por fruto), uvas, frutos secos, sementes de girassol, nozes de «casca de papel», amendoins, fruta de «longa vida», etc, etc..
Fala-se alto, discute-se o preço, notas amarrotadas passam duma mão para outra. Cada mão transporta vários sacos até ao carro, ou até à bicicleta, onde é habitual ver molhos de alho francês e de outras ervas de nomes intraduzíveis amarrados atrás do selim, a caminho de casa. Curiosamente a maioria dos clientes são homens.
O meu amigo Wang, com o carro bem cheio de vegetais, dispara de repente: queres ver um cemitério? Claro que sim. Lá fomos uns 40 Kms para fora de Beijing até ao começo da montanha em cujas cristas mais altas passa a grande muralha. Grande muralha que começa cem metros dentro do Oceano Pacífico, para parar as invasões dos povos do Norte, (pensando até numa invasão pelo mar) e se passeia por mais de 6000 Kms.
Chegámos, entrámos e vi na encosta da montanha muitos terraços, com muitas árvores e conjuntos de túmulos já colocados e muitos já ocupados com dois vasos de cinzas, um por pessoa falecida. Alguns deles com flores ou só com as pétalas de flores, sempre buscando a harmonia das cores. Cada um ocupa entre metade e um terço duma sepultura nossa. Todos os corpos são cremados. Em cada terraço as sepulturas são iguais e existem desde as mais simples e baratas até ao que parece serem pequenos templos. Estes são caros. Os familiares compram o direito de uso por vinte anos, renovável por iguais períodos.
Não há cerimónias religiosas normalmente, mas se a família quiser pode havê-las numa sala específica para a despedida final.
Em conclusão: olhando para o cemitério o que se vê são árvores e o que se ouve é música, porque os chineses consideram que a música deve acompanhar os falecidos. A música é suave mas não triste.
Amigo Wang, não sei onde me levas agora, mas gostava de passear no Templo do Céu. E para lá rumámos. Outros tantos quilómetros, que nos levaram cerca de meia hora a fazer, porque era sábado. Num dia de semana teriam sido várias horas.
Entrámos e começámos a andar sem grande rumo. O jardim, principalmente constituído por árvores, tem vários passeios e largos e larguinhos com bancos, onde as pessoas descansam. Mas não só descansam, também tocam, dançam e cantam. A enorme variedade de instrumentos, desde as concertinas e saxofones nossos conhecidos até aos instrumentos chineses como uns pequenos violinos de sons muito agudos e desagradáveis quando mal tocados e doces e belos, no caso contrário. Além deste há o «guzheng», uma espécie de instrumento de cordas que se toca horizontalmente, ou o «er hu» pequeno violino que se toca apoiado no chão com um arco de metal. Muitas destas pessoas que vão aos jardins, principalmente nos fins-de-semana, têm outras pessoas que os acompanham cantando desde canções populares até árias de ópera chinesa. Um pouco mais longe um homem toca canções tradicionais russas acompanhado por três senhoras com vozes bem trabalhadas. Íamos andando por entre as árvores, algumas com 600 anos e vemos outras pessoas dançando (ou melhor treinando) o tango. Traziam um pequeno rádio com cassetes e repetiam uma e outra vez os passos, com a elegância de Buenos Aires. Já não me surpreendi ao ver mais de uma dezena de pares voando ao som das valsas de Strauss. E outros e tantos. Andámos uns dois quilómetros, quase sempre em silêncio, quando reparei que todo o jardim, de cerca de 280 hectares, tinha música, muito suave e com o som exacto para se ouvir sem perturbar ninguém.
Pedi ao meu amigo que nos sentássemos um pouco e fiquei a pensar de donde viria aquela força para que milhões de pessoas estivessem a construir harmonia e beleza naquele momento por toda a China. Não vi um gesto violento, nem sequer brusco. Sei que os há, como em todo o lado, mas não os vi.
São quase onze e meia. São horas de almoçar, disse o Wang. Grande ideia, amigo!


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