Salário mínimo nacional

Uma conquista da Revolução, uma conquista a defender

Anselmo Dias
Recuemos no tempo. Recuemos a 1974. Estamos no dia 27 de Maio, passados que foram 32 dias da data histórica e gloriosa do 25 de Abril. Estamos, nesse dia de Maio, no dia em que, pela primeira vez, em Portugal foi instituído o salário mínimo nacional, em cujo Decreto-Lei, no início do seu preâmbulo, era referido que: «O regime deposto pelo Movimento das Forças Armadas em 25 de Abril deixou a economia nacional em grave situação de depauperamento e instabilidade e manteve a generalidade do povo português, especialmente a classe trabalhadora, em níveis de vida muito baixos. Será longa e árdua a correcção de todos estes desequilíbrios sociais e económicos, mas nela se empenha o Governo provisório na aplicação do Programa do Movimento das Forças Armadas.»
Com este diploma foi imposto que a remuneração a aplicar aos trabalhadores por conta de outrem não podia ser inferior a 3300$00, de que resultou um benefício para cerca de 50% da população activa, percentagem que subiu aos 68% nos funcionários públicos, tal era a miséria salarial herdada do fascismo.
Passados 34 anos é tempo de perguntar se «...a correcção de todos estes desequilíbrios sociais e económicos...» defendidos então no Programa do Movimento das Forças Armadas foi obtida.
Sim ou não? pergunta-se.
A resposta é, obviamente: não!
O salário mínimo nacional imposto por um Decreto-Lei, em 1974, foi posteriormente, em 1976, elevado à dignidade de um direito constitucional «... tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento».
A redacção instituída em 1976 corresponde formalmente, quase a 100%, à actual versão da Constituição, salvo na parte em que se definia a existência de um salário máximo, cuja formulação, riscada no decurso do processo contra-revolucionário e de descaracterização da Constituição, é agora, pela profunda crise do sistema capitalista, recuperada, manhosa e hipocritamente, no pressuposto de que é preciso fazer alguma coisa para que tudo fique na mesma, tudo isto pela acção das forças que não só endeusam a mão invisível da economia de mercado como advogam não haver limites para as obscenas mordomias dos administradores e gestores das grandes empresas.
Mas voltemos a 1974 e ao então vigente salário mínimo e coloquemos a seguinte questão: os 3300$00 atribuídos naquela data, no que diz respeito ao poder de compra, foram mantidos ao longo dos anos?
Por outras palavras: os actuais 426 euros, do salário mínimo nacional, em 2008, têm o mesmo poder de compra que tinham os já referidos 3300$00, em 1974?
A resposta é, novamente: não!
Este «não!» é baseado no estudo comparativo da evolução, ano a ano, do salário mínimo, correlacionado com a evolução da inflação, esta última analisada sob dois prismas: a inflação verificada no ano anterior e a inflação verificada no próprio ano. É importante assinalar estes dois aspectos porque, a cada um destes critérios, correspondem valores diferentes.
De facto, a vida mostrou-nos que quando a inflação está numa fase decrescente o critério, a partir do cavaquismo, para actualizar os salários com base na inflação estimada significou um tremendo logro, exemplarmente comprovado ao longo dos anos.
E para que não restem dúvidas a este respeito sugerimos a leitura atenta da Tabela 1, para cuja divulgação, junto dos trabalhadores e da população em geral, exortamos todos os nossos leitores.
Esta Tabela é constituída por 5 colunas, a saber:
1.ª - coluna: refere o ano;
2.ª - coluna: refere o valor do salário mínimo traduzido em euros;
3.ª - coluna: refere a inflação verificada em cada ano;
4.ª - coluna: calcula o salário mínimo em função da inflação verificada no ano anterior;
5.ª - coluna: calcula o salário mínimo em função da inflação verificada no próprio ano.
Como se vê, de acordo com a evolução dos últimos 34 anos, o critério quanto à reposição do salário, em função da inflação verificada no ano anterior, teria beneficiado mais os trabalhadores.
E porquê?
Porque repõe, no dia 1 de Janeiro de um dado ano, aquilo que era o poder de compra do salário mínimo no dia 1 de Janeiro do ano anterior, embora não reponha o prejuízo decorrente da inflação ao longo dos doze meses do ano. Sobre este tema, que é pouco evidenciado em termos reivindicativos, é de salientar que, entre 1971 e 1972, o grupo progressista que lutava contra a fascização do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, e que acabou por ganhar o sindicato, defendia, e bem, que à taxa de inflação verificada devia acrescer uma projecção para metade da vigência da tabela salarial por forma a que, no lapso dos 12 meses seguintes, o aumento dos preços «não comesse» os aumentos salariais entretanto verificados.
A este propósito, quem não se lembra que, à actualização do salário mínimo em 1 de Janeiro, corresponde, logo no próprio dia, o aumento, entre outros, do gás, da electricidade, dos transportes e das rendas de casa?
Ainda, a este propósito, quem não sabe que um salário fixado no princípio do ano vai progressivamente encolhendo na razão directa do aumento dos bens de consumo, de tal forma que uma «coisa» que era em 1 de Janeiro deixou de o ser em 31 de Dezembro?
Não respeitar, pois, o critério da inflação verificada no ano anterior (mesmo sem uma projecção para metade da vivência da tabela) e calcular o salário mínimo na base da inflação do ano vigente, mesmo que as previsões do Governo sejam acertadas – o que não acontece na esmagadora maioria dos casos – é contribuir para a degradação do poder de compra dos trabalhadores como a Tabela 1 claramente demonstra.
Com efeito, se as actualizações tivessem respeitado a inflação verificada no ano anterior, o salário mínimo em 2007 seria de 640,63 euros em vez dos 426 euros. Se o critério tivesse seguido a inflação verificada no próprio ano, o valor seria de 513,81 euros, mesmo assim muito superior aos já referidos 403 euros.
Daqui decorre que o actual salário mínimo é inferior em cerca de 59% e 27%, consoante os critérios utilizados, pelo que os 500 euros acordados em Concertação Social para vigorar em 2011 já deviam estar implementados, ou em 1999 ou em 2006, de acordo com o atrás referido, o que traduzido em anos significa um atraso balizado entre um mínimo de 5 anos e um máximo de 12 anos.

Os sectores mais abrangidos pelo salário mínimo

De acordo com o último Boletim Estatístico do Ministério do Trabalho, a percentagem de trabalhadores abrangidos pelo salário mínimo era de 6%, em Outubro de 2007.
A estatística não referia se aquela percentagem incidia sobre o emprego total (5 228 100 empregados), ou sobre os 3 978 300 trabalhadores por conta de outrem.
Se os 6% disserem respeito ao emprego total, então o salário mínimo abrange cerca de 313 700 empregados.
Se os 6% disserem respeito ao trabalho por conta de outrem, então estamos perante um universo de cerca de 238 700 trabalhadores.
Entretanto, o Governo fala de 365 000 futuros beneficiários e os empresários elevam a fasquia entre os 500 000 e os
600 000.
Esta valorização não é inocente. À sua maximização está associada a demagogia de que os empresários não têm disponibilidades financeiras para, por cada trabalhador abrangido pelo salário mínimo, suportar um aumento de 80 cêntimos diários, pelo que, no dizer de um dirigente de uma associação de pequenas e médias empresas, os seus associados, caso o salário mínimo seja fixado em 450 euros, não renovarão os contratos a termo e, por essa via, o desemprego vai disparar.
O grande patronato, que inicialmente perfilhava uma postura similar, enveredou pela subtileza e, pela voz da CIP, a condenação do salário mínimo faz-se agora pelas consequências que o mesmo irá ter na grelha salarial, na medida em que o valor acordado, para vigorar em 1 de Janeiro próximo, irá «empurrar» para cima várias categorias profissionais no sentido de se distanciarem do salário mínimo e, assim, haver o efeito dominó em certas actualizações salariais.
Numa sociedade de classes cada um defende os seus próprios interesses. O patronato, num vale-tudo argumentativo, defende a sua propriedade e o lucro pela apropriação da mais-valia gerada pelos trabalhadores. Estes últimos defendem a sua força de trabalho.
É necessário, pois, estarmos alertados para as contradições existentes e, desde já, preparados para confrontar a chantagem patronal. Para tanto importa conhecer a dimensão dos trabalhadores abrangidos no presente e no futuro com o salário mínimo não só daquele a ter lugar em 1/1/2009, como nos anos seguintes.
De acordo com a estatística disponível, as maiores concentrações de trabalhadores beneficiários do salário mínimo são, em termos percentuais, os seguintes:
alojamento e restauração, 13,9%; indústrias transformadoras, 6,8%; comércio, 6,6%; actividades imobiliárias e serviços prestados às empresas, 4,7%; construção civil, 4,9%. Há um sector importante que também é abrangido pelo salário mínimo, que é a acção social, e cuja percentagem não é possível explicitar correctamente na medida que está associada ao sector da saúde.

Embora os dados estejam muito agregados, não é difícil concluir que, nas indústrias transformadoras, os sectores onde existem mais trabalhadores abrangidos com o salário mínimo são o têxtil, o vestuário, o calçado, a cortiça e o mobiliário.
Por outro lado, são as mulheres as mais atingidas. Por cada homem abrangido pelo salário mínimo há mais de duas mulheres nessas circunstâncias, o que comprova a importância do trabalho sindical e político junto das mulheres trabalhadoras.

A luta continua

A reivindicação da CGTP pela dignificação do salário mínimo e pelo estabelecimento de um valor a ser atingido, faseadamente, até 2011, significou, na actual relação de forças, um avanço positivo na melhoria salarial de muitos trabalhadores. Tal reivindicação reflecte, como é salientado no ponto 3.1.6 das Teses do XVIII Congresso do PCP, a importância da luta de massas, não só «para a contenção da ofensiva em curso», como para levar o Governo a ceder.
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Fontes:
Teses (Projecto de Resolução Politica), XVIII Congresso do PCP
Decreto-Lei 217/74 de 27 de Maio (diploma que instituiu o salário mínimo nacional)
Boletim Estatístico de Setembro de 2008, do Ministério do Trabalho e Segurança Social
A Tabela 1 foi construída por Elsa Maria Alves Dias


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