Terra de escravos

Correia da Fonseca
1. Foi na SIC, assinada pela jornalista Miriam Alves e por Jorge Pelicano (imagem), uma dessas reportagens com que de há uns tempos para cá as estações parecem querer demonstrar que poderíamos ter bom telejornalismo em horário acessível se elas, as estações, quisessem. O tema deste trabalho foi, sob o título de «O Contrato», a escandalosa e indignante enxurrada de trabalho precário que praticamente tomou conta do mercado de trabalho sob o implícito argumento de que é assim que a modernidade exige e a explícita alegação de que o patronato, coitado, não pode suportar essa forma particular de direito humano que é a estabilidade mínima do emprego. Muitos foram os dados concretos e altamente significativos que a reportagem alinhou ao longo dos minutos da sua duração. Três casos concretos avultaram: o de Maria João de Sousa, arqueóloga, o de Vítor Monteiro, que não pareceu ter outra especialidade além do facto de trabalhar desde os cinco anos de idade sem conseguir a sonhada estabilidade laboral, e o de João Pacheco, jornalista galardoado com o Prémio Gazeta mas nunca, pelos vistos, com um contrato de trabalho. Estes três casos, como aliás os de muitos outros referidos pela reportagem com menos vagar, englobados numa situação generalizada que consubstancia de facto uma realidade desumana, socialmente monstruosa, caracterizavam-se por aspectos que se tornaram vulgares: privação do direito a férias, a subsídios, a outros chamados «benefícios». E isto tanto no sector privado (João Pacheco foi identificado como jornalista do «Público», ao serviço do qual terá merecido o prémio que lhe foi atribuído) quer no sector público, caso de Maria João de Sousa. Quanto a João Pacheco, vimo-lo sentado diante de um televisor que o ajudaria a passar as horas, já em tempo que seria o de jantar, à espera de um telefonema que viria dizer-lhe se na manhã seguinte teria ou não trabalho. Neste caso, como decerto em milhares de situações idênticas, talvez se possa imaginar o desgaste produzido na saúde mental e física de um trabalhador em tais condições. Mas é claro que esse aspecto é apenas um entre os muitos que esta específica forma de alegada modernidade provoca. Como bem entende quem o queira entender, trata-se de um estado de coisas que desarticula completamente o tecido social, que impede formas elementares de realização pessoal dos cidadãos, que configura uma permanente agressão contra o fundamental direito a existir em mínima paz psicológica.

Uma forma peculiar

Como se vai sabendo, o argumento invocado de modo expresso ou implícito para supostamente justificar esta forma de barbárie é o de que não haverá outra maneira de permitir a sobrevivência das empresas empregadoras. Perante isto, é natural e quase inevitável lembrar os que em tempos, em certos lugares do mundo, sustentavam que a manutenção da escravatura era indispensável para permitir a sobrevivência de certas formas de actividade agrícola e, complementarmente, da organização «civilizacional» dela decorrente. Ora, o que já está praticamente implantado e instituído nas sociedades como a portuguesa, com enorme parte da actividade económica assente na utilização de mão-de-obra espoliada do direito a uma mínima segurança no emprego, é uma forma peculiar de escravatura que tem sobre a tradicional a desvantagem de o patronato, forma actual do antigo dono, nem sequer ser obrigado a alimentar e alojar o escravo nos períodos em que não precise dele. Dizê-lo talvez sirva para iluminar o carácter inadmissível da situação actual, consentida por sucessivos governos que, contudo, reagem escandalizados perante quem diga que estão ao serviço de uma classe que parcialmente é de facto uma classe esclavagista. O caso é que este nosso País, embora se saiba que não apenas ele, tem vindo a tornar-se uma verdadeira terra de escravos «modernos». E, perante isto, faz talvez inconscientemente figura de hipócrita quem venha lamentar que os casais portugueses não tenham filhos e a demografia acuse uma constante regressão. Como se um estranho sentido de dever patriótico mandasse aos jovens casais que tenham filhos mesmo não sabendo se no dia seguinte terão o emprego que permita alimentá-los. Como se um prévio dever, esse sim patriótico e situado ao nível da governação, não mande providenciar para que nenhum Vítor Monteiro tenha de estar noite após noite à espera de um telefonema que lhe diga ter no dia seguinte, mas talvez só nesse dia seguinte, direito ao trabalho.


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