Arrependimento & variações
Dia após dia, serão após serão, passam pelos ecrãs dos nossos televisores as caras e as vozes das mais desvairadas gentes dos quatro cantos do mundo. Para além dos compatriotas nossos, naturalmente mais numerosos e frequentes até porque estão aqui mais à mão, os cidadãos norte-americanos, civis ou militares, constituem o maior contingente de presenças, o que também não surpreende: afinal, por força de opções decididas bem longe e acima de cada um de nós, os portugueses são a modos que semicidadãos dos Estados Unidos em diversas áreas. Basta repararmos na alimentação mediática, digamos assim, que diariamente nos é fornecida, e não apenas por via televisiva: é sintomático que apesar de reivindicarmos orgulhosamente a condição europeia sejam raros os filmes europeus nas salas de cinema portuguesas, as produções europeias na programação das «nossas» estações de TV, a música europeia nas rádios de Portugal. Mas passemos sobre este aspecto, aliás não insignificante, e regressemos ao que vinha a ser dito: é muita gente a que todos os dias passa nos ecrãs dos televisores, sucedendo que muita dela não faria lá falta nenhuma, perdoe-se-me a brutalidade da expressão, mas alguma outra é agradável, ou interessante, ou útil, ou comovedora. Ou um pouco de tudo isto e ainda alguma coisa mais. Ora, aconteceu que de entre todas as figuras que nos dias ainda recentes surgiram no ecrã do meu aparelho, a que mais me impressionou foi a do senhor Alan Greenspan, o homem que durante décadas foi uma espécie de Papa não apenas do capitalismo USA, mas também do capitalismo mundial em todo o esplendor da sua capacidade de convencimento, facto este que aliás alguns andam por aí a ver se esquecemos. O homem, coitado, vinha desfeito, assumidamente encharcado em molho de arrependimento, a fazer-me lembrar uma espécie de Egas Moniz à escala mundial e sem baraço ao pescoço. Enganara-se, disse ele, estivera enganado durante estes anos todos. O que é chato, é claro. O pior, porém (e isso não o explicitou ele embora decorresse directamente da confissão feita), é que por estar enganado induzira ao mesmo engano milhões de outros. Com consequências que por agora apenas se vislumbram mas já assustam muita gente.
Retirada estratégica
Correndo embora o risco de simplificação, direi que o erro de que o pobre Greenspan está arrependido é o de ter acreditado que o capitalismo seria um sistema tão perfeito que se autocorrigiria quando fosse caso disso, dispensando mãos alheias excepto porventura a divina mão que nos States tem, como se sabe, aficionados de vários matizes. É agora tristemente sabido que a realidade, senhora de mau ou difícil feitio, irrompeu pelos Estados Unidos adentro, e não só, para impor e demonstrar na prática as suas próprias regras. Mas acontece que essas regras não eram propriamente desconhecidas e que a catástrofe agora ocorrida e de facto ainda em curso não foi uma surpresa para toda a gente: pelo menos nas suas linhas gerais e em consequência de observações rigorosas da vida tal como ela é e não como conviria que fosse, regras e catástrofe estão completamente dentro das previsões feitas há muitas décadas por um senhor de barbas cujas razões estão agora a ser reconhecidas em maior ou menor grau. Um pouco por toda a parte, lê-se e ouve-se agora, ainda que em diversos tons, que «Marx tinha razão». Mas há os resistentes, os que por um ou outro motivo não estão dispostos a reconhecer o que a realidade lhes mostra, e esses fazem agora um movimento que lembra muito as habituais «retiradas estratégicas» dos exércitos derrotados. Assim, recusam-se a reconhecer a razão de Marx, esse demónio, e recuam para a concessão de alguma razão a Keynes, o economista que embora trabalhando no seio do capitalismo acabou por ter má fama talvez por estar associado à memória de Roosevelt, o presidente da vitória sobre o nazismo. Na verdade, como se sabe, isto anda sempre tudo ligado. É talvez a altura de, tanto quanto possível (e bem se sabe que o possível é muitas vezes limitado), os que sempre souberam da natureza do capitalismo e das regras que inevitavelmente o enquadram, isto é, os marxistas, virem lembrar as razões de Marx e, de caminho, a precariedade dos remédios de Keynes. E isto para que se torne possível uma consequência: o rasgar de mitos capitalistas, esses sim, obsoletos, e a passagem para um horizonte económico-financeiro amplo, necessário e com efectivo futuro.
Retirada estratégica
Correndo embora o risco de simplificação, direi que o erro de que o pobre Greenspan está arrependido é o de ter acreditado que o capitalismo seria um sistema tão perfeito que se autocorrigiria quando fosse caso disso, dispensando mãos alheias excepto porventura a divina mão que nos States tem, como se sabe, aficionados de vários matizes. É agora tristemente sabido que a realidade, senhora de mau ou difícil feitio, irrompeu pelos Estados Unidos adentro, e não só, para impor e demonstrar na prática as suas próprias regras. Mas acontece que essas regras não eram propriamente desconhecidas e que a catástrofe agora ocorrida e de facto ainda em curso não foi uma surpresa para toda a gente: pelo menos nas suas linhas gerais e em consequência de observações rigorosas da vida tal como ela é e não como conviria que fosse, regras e catástrofe estão completamente dentro das previsões feitas há muitas décadas por um senhor de barbas cujas razões estão agora a ser reconhecidas em maior ou menor grau. Um pouco por toda a parte, lê-se e ouve-se agora, ainda que em diversos tons, que «Marx tinha razão». Mas há os resistentes, os que por um ou outro motivo não estão dispostos a reconhecer o que a realidade lhes mostra, e esses fazem agora um movimento que lembra muito as habituais «retiradas estratégicas» dos exércitos derrotados. Assim, recusam-se a reconhecer a razão de Marx, esse demónio, e recuam para a concessão de alguma razão a Keynes, o economista que embora trabalhando no seio do capitalismo acabou por ter má fama talvez por estar associado à memória de Roosevelt, o presidente da vitória sobre o nazismo. Na verdade, como se sabe, isto anda sempre tudo ligado. É talvez a altura de, tanto quanto possível (e bem se sabe que o possível é muitas vezes limitado), os que sempre souberam da natureza do capitalismo e das regras que inevitavelmente o enquadram, isto é, os marxistas, virem lembrar as razões de Marx e, de caminho, a precariedade dos remédios de Keynes. E isto para que se torne possível uma consequência: o rasgar de mitos capitalistas, esses sim, obsoletos, e a passagem para um horizonte económico-financeiro amplo, necessário e com efectivo futuro.