Pena capital

Correia da Fonseca
No passado fim-de-semana, a televisão voltou a falar dos que morreram em consequência da exposição à radioactividade que atingiu os que trabalharam em minas de urânio. Vimos mesmo imagens breves da marcha realizada em Nisa como expressão da recusa da população perante a ameaça do recomeço da exploração de minas naquela vila. Mas a questão não tem a ver apenas com aquela zona: nos distritos da Guarda e de Viseu foram dezenas os trabalhadores há anos assassinados por radiações sem que sequer tivessem sido previamente avisados do risco enorme que corriam, e ainda hoje a ameaça impende sobre quem lá mora. Este aspecto não foi abordado nas informações incluídas nos apressados telenoticiários deste fim-de-semana, é claro que havia outras notícias relevantes à espera de antena, há sempre um acidente grave em qualquer lugar do mundo e o Benfica tivera dificuldades perante o Penafiel, mas o caso das radiações provenientes de minas de urânio e das vítimas já por elas provocadas foi abordado há uns tempos pela televisão, e com mais vagar. O telespectador pôde então saber que não só a efectiva pena de morte foi aplicada a muitos que tentaram ganhar a vida trabalhando em minas de urânio, mas também que mesmo famílias de trabalhadores residentes em áreas radioactivas estiveram e continuam a estar expostas a essa forma particularmente chocante de pena capital aplicada a inocentes. Sobre esta situação, já evidentemente trágica, acresce que o Estado se recusa a aceitar o vínculo de causa e efeito nestes casos alegando escassez de prova científica. Assim, embora as vítimas do trabalho desprevenido em condições insanas estejam comprovadamente mortas, os departamentos oficiais recusam assumir desse facto as consequências que porventura minorariam os seus efeitos pelo menos no que se refere às famílias sobreviventes. E acontece que o tema aparentemente esquecido retoma agora alguma actualidade porque, tendo a chamada «opção pelo nuclear» sido relançada para discussão por alguns sectores e a um certo nível, o risco de reabertura da exploração mineira e portanto do aparecimento de uma nova geração de vítimas surge com plausibilidade. Entretanto, como foi denunciado nas tele-reportagens anteriores sobre o assunto, a radioactividade continua lá, nos lugares onde já existia, e a hecatombe prossegue lenta mas inexoravelmente sem que se tenham tomado quaisquer providências perante ela, que se saiba. O que não surpreende.

Como é costume

O que não surpreende, repete-se, porque, como há muito foi denunciado por economistas e outros observadores da realidade, aliás de origem burguesa, o destino «natural» dos trabalhadores ligados às tarefas mais duras, pelo menos desses, é morrerem rapidamente e incomodando o menos possível logo que termine o período da sua utilidade como mão-de-obra rendível. Nem sequer foram Marx ou Engels quem no século XIX formulou a chamada Lei de Ferro que reconheceu que a exploração do trabalho tende a intensificar-se até chegar ao limite da sobrevivência do explorado. É verdade que as coisas mudaram de então para cá, que a pressão das lutas dos trabalhadores nas suas diversas formas conduziu a concessões como a melhoria das remunerações, as férias, a segurança social, os serviços públicos de Saúde, todas essas fantasias consideradas abusivas pelo capitalismo, e de tal modo que está em curso, como se sabe, uma lenta ofensiva para acabar com elas. Mas o essencialzinho do pensamento patronal mais clássico continua vivo: para essa gente de mãos duras e sempre mal-agradecida, só o mínimo possível. É certo que há excepções a esta regra geral aliás nunca abertamente expressa para não parecer mal, e excepções provavelmente numerosas, mas o facto de o serem não anula, antes confirma, o seu carácter de excepções e a factualidade da regra geral. Neste caso dos assassinados pelo urânio português nem será decerto caso de gula patronal ou simplesmente de indiferença por parte de quem decide: há-de ser antes, talvez, a tradicional cegueira administrativa e burocrática perante as tragédias de quem apenas trabalha. Entretanto, o tempo vai decorrendo, as radiações vão fazendo o seu trabalho, a pena capital continua a ser aplicada, os senhores contextos regulamentares permanecem sólidos e indiferentes. Tudo, pois, como é costume.


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