Um auto-retrato
Para o serão da passada segunda-feira havia sido anunciado o regresso do «Prós e Contras» com um cartaz convidativo para quem tem por tarefa comentar ou avaliar o que vai passando nos ecrãs dos nossos televisores. O factor mais atraente, digamos assim, não era a presença anunciada de alguns sábios do costume, até porque para vê-los e ouvi-los não é preciso acorrer sofregamente para diante dos aparelhos, mas sim a participação de José Barata-Moura, homem que não apenas sempre vale a pena ouvir como convém registar, preto no branco para melhor memória, pelo menos algumas das frases com que ele frequentemente reencaminha as conversas para os terrenos da lucidez e do rigor. Assim, o reencontrado «Prós e Contras» surgia como tema praticamente obrigatório para esta coluna, hoje. Porém, acontecera que no serão de domingo estivera «O Momento da Verdade», o mais recente acepipe com que a SIC presenteou os seus telespectadores, e o programa é de tal modo representativo dos caminhos que o negócio privado da TV há muito tomou que seria imperdoável passar sobre ele sem uma referência relativamente alongada. Para mais, é sabido que «O Momento da Verdade» é programa para atrair muito mais ampla audiência do que uma emissão do «Prós e Contras» tendo por título «Pensar o País». Na verdade, tudo leva a crer que a simples palavra «pensar» pode, no Portugal de hoje e graças em grande parte à acção da televisão que temos, afugentar muita gente, ao passo que o conteúdo de «O Momento da Verdade», esse sim, é verdadeiramente aliciante: trata-se bisbilhotar os mais pessoais e íntimos aspectos da vida alheia. Bem me lembro de que o sempre saudoso Mário Castrim ensinava que o comentador de televisão deve estar sempre onde está o público. De onde a opção desta coluna decidindo ocupar-se do novo programa apresentado por Teresa Guilherme, o que só por si é sinal de algum modo identificador de um género
A venda
Como decerto toda a gente já sabe, «O Momento da Verdade» coloca um concorrente a responder a perguntas muito mais que indiscretas, embaraçosas, desafiando-o a que responda com verdade se quiser ganhar um prémio pecuniário que pode ser chorudo. A verdade das respostas é aferida pela utilização de um «detector de mentiras» aparentemente herdado de um outro programa, já distante no tempo, que se notabilizou por nele ter passado o então famoso Padre Frederico, posteriormente julgado, condenado e evadido para o Brasil onde nascera. Mas quanto a este «O Momento da Verdade», que é o que nos interessa agora, talvez o mais importante seja reter que ele surge com claros sinais de apostar forte em três dados fundamentais: que as perguntas incidam sobre aspectos verdadeiramente pessoais, íntimos e tão escabrosos quanto possível; que os telespectadores acorram gulosamente a meter o nariz, isto é, os olhos e ouvidos, no mais recôndito da vida alheia; e que os concorrentes venham dispostos a trocar a sua intimidade pela possibilidade de embolsarem uma boa maquia. Este último aspecto é talvez o mais perturbante e também o mais significativo. Na verdade, a troca da intimidade por dinheiro, quer dizer, a sua venda, é o que há milénios está na raiz da actividade comercial que com razão ou sem ela passa por ser a da mais antiga profissão do mundo. E aqui chegamos ao mais impressionante da questão: é que esta venda, tida como aceitável e porventura mesmo como natural quando surgida no quadro de um inocente concurso na TV, pode ser encarada, após uns momentos de reflexão, como um involuntário e sintético auto-retrato não apenas de uma boa parte da televisão que temos mas também da própria sociedade «pragmática e sem preconceitos» em que vivemos. Não é por acaso que tantos concursos abundam na televisão, todos ou quase todos com prémios pecuniários ou em espécie que de facto equivale a dinheiro. Não é por acaso que o «bom» telespectador deve não ser muito exigente (no sentido de não ter tendências supostamente «intelectuais» ou «puritanas») e há-de conformar-se gratamente com o que lhe dão. É que, em princípio, a qualquer altura pode ser convidado para uma «venda». Talvez da sua intimidade, como os concorrentes de «O Momento da Verdade». Talvez dos seus direitos. Talvez dos direitos dos outros. Depois se verá.
A venda
Como decerto toda a gente já sabe, «O Momento da Verdade» coloca um concorrente a responder a perguntas muito mais que indiscretas, embaraçosas, desafiando-o a que responda com verdade se quiser ganhar um prémio pecuniário que pode ser chorudo. A verdade das respostas é aferida pela utilização de um «detector de mentiras» aparentemente herdado de um outro programa, já distante no tempo, que se notabilizou por nele ter passado o então famoso Padre Frederico, posteriormente julgado, condenado e evadido para o Brasil onde nascera. Mas quanto a este «O Momento da Verdade», que é o que nos interessa agora, talvez o mais importante seja reter que ele surge com claros sinais de apostar forte em três dados fundamentais: que as perguntas incidam sobre aspectos verdadeiramente pessoais, íntimos e tão escabrosos quanto possível; que os telespectadores acorram gulosamente a meter o nariz, isto é, os olhos e ouvidos, no mais recôndito da vida alheia; e que os concorrentes venham dispostos a trocar a sua intimidade pela possibilidade de embolsarem uma boa maquia. Este último aspecto é talvez o mais perturbante e também o mais significativo. Na verdade, a troca da intimidade por dinheiro, quer dizer, a sua venda, é o que há milénios está na raiz da actividade comercial que com razão ou sem ela passa por ser a da mais antiga profissão do mundo. E aqui chegamos ao mais impressionante da questão: é que esta venda, tida como aceitável e porventura mesmo como natural quando surgida no quadro de um inocente concurso na TV, pode ser encarada, após uns momentos de reflexão, como um involuntário e sintético auto-retrato não apenas de uma boa parte da televisão que temos mas também da própria sociedade «pragmática e sem preconceitos» em que vivemos. Não é por acaso que tantos concursos abundam na televisão, todos ou quase todos com prémios pecuniários ou em espécie que de facto equivale a dinheiro. Não é por acaso que o «bom» telespectador deve não ser muito exigente (no sentido de não ter tendências supostamente «intelectuais» ou «puritanas») e há-de conformar-se gratamente com o que lhe dão. É que, em princípio, a qualquer altura pode ser convidado para uma «venda». Talvez da sua intimidade, como os concorrentes de «O Momento da Verdade». Talvez dos seus direitos. Talvez dos direitos dos outros. Depois se verá.