A Fina linha da saudade

Francisco Mota
Para o Sr. Cobra (ou à sua memória) – Vila de Rei (Beira Baixa)


Quem sai de Boticas a caminho de Carvalhelhos, não reparara que à esquerda, ainda dentro da povoação, está uma casa com um pequeno pátio e uma latada de parreira. Tudo isso era, há 20 ou 30 anos, o Restaurante Santa Cruz, final de peregrinações para comer trutas fritas, lombo de vitela assado no forno, presunto, pão centeio e beber «vinho dos mortos».
A qualidade de qualquer dos pratos nunca foi igualada por novos estabelecimentos que foram abrindo em Boticas ou terras à volta.
E é natural que assim aconteça. As trutas que se comiam não eram de viveiros (que praticamente não existiam). Eram de rio e sabiam nadar. A fritura dava-lhes um envoltório estaladiço exterior e um profundo sabor a peixe de água limpa de rio de montanha.
No Inverno comia-se numa sala com grandes janelas para a horta e montanha. E comiam-se lombos de carne barrosã assada no forno, que destilava a sua própria gordura e fazia brilhar toda a peça com as suas batatas, igualmente reluzentes.
Quando calhava ser cozido ou feijoadas, todos os componentes utilizados vinham de perto. No máximo umas centenas de metros.
O vinho era o «dos mortos». Esse nome vinha-lhe da técnica local de enterrar as garrafas bem rolhadas e esperar uns meses, para serem desenterradas e bebidas. Isto segundo uns, porque segundo outros seria porque uma pessoa a quem todos davam como morto, ao beber umas gotas de vinho teria voltado à vida contente e feliz.
Tudo isto acabou quando os donos, cansados de tanto trabalho e de achar que «a juventude de hoje já não sabe comer» decidiram ser inflexíveis e fechar o Santa Cruz. Até hoje.
Haverá também uns trinta anos que rumei a outra terra mais para o Sul: Vila de Rei, na chamada zona do pinhal. Ia buscar um restaurante chamado «Cobra». Desde Abrantes ate lá são poucos quilómetros, mas há muito mais curvas e naquela altura uma estrada infame. Mas lá se chegou. Perguntando, entrei numa casa pequena, branca por dentro e sem grandes elementos de referência local.
Quase vazia («no fim-de-semana há pouca gente porque os funcionários vão as suas terras»), perguntámos se havia maranhos (ou seja, o estômago do cabrito ou borrego, recheado de um cozinhado de arroz, miúdos, e – fundamental – hortelã). Prato aparentemente difícil, mas que ali era duma delicadeza e de um equilíbrio fantásticos. O Sr. Cobra não nos dava liberdade. Explicava, perguntava, propunha outros pratos e, assim, comemos, creio, cabritinho estonado, sopa seca de feijão e isto mais aquilo. Seguramente também terão desaparecido umas quantas tigeladas. Por outro lado, o Sr. Cobra ficou a saber que éramos de Lisboa e tínhamos ido a Vila de Rei só para comer na sua casa. A alegria era geral, como poderão entender facilmente. À partida, o Sr. Cobra achou que em Lisboa não havia maranhos decentes e entregou-nos um embrulho com varias fatias e instruções concretas de como aquecê-las. Estas instruções vinham directamente da cozinha onde imperava a esposa do Sr. Cobra.
Anos depois decidi rumar novamente a Vila de Rei, com os apetites desembestados, sabendo eu que isso é pecado mortal num bom gastrónomo.
Lá chegámos. A casa era mais ou menos igual, mas o medo começou a aparecer quando vimos o Sr. Cobra, envelhecido, sentado numa cadeira a um canto e lemos uma lista que oferecia bife de porco ou vaca e bacalhau assado. Há maranhos? Não, já não fazemos, disse o empregado. Não sei o que comemos, mas perguntámos se podíamos falar com o Sr. Cobra. Levantou-se e veio sentar-se connosco. Contámos-lhe que tínhamos estado lá e até nos tinha dado maranhos para casa. Aí os olhos brilharam-lhe e disse «São os senhores de Lisboa?» E começou a chorar. Agarrei-lhe no braço e contou-nos: a minha mulher morreu. Eu fiquei aqui sozinho, sem saber que fazer. Ela era a alma desta casa. Apareceu um retornado e vendi-lhe tudo. Venho cá quase todos os dias, mas isto já não é o Cobra.
Quase não comemos, pagámos, demos um abraço ao nosso amigo e voltámos para Lisboa. Outro restaurante desaparecido.
Quando, ao pensar nestas casas, casas desaparecidas, que tinham todas pessoas dentro, obreiros e artistas, que faziam uma arte irrepetível, devemos ficar sempre na fina linha da saudade. Se, como as vezes apetece, rompemos essa linha, o que teremos será sempre a mancha negra da tristeza.


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