A batota
Já não sei se foi um, se forem dois ou se foram muitos mais, os cavalheiros sapientes e simpáticos que vieram à televisão explicar-nos a verdadeira dimensão do «Não» irlandês ao aparentemente malogrado Tratado de Lisboa. Explicaram-nos eles, com uma paciência que nós talvez não mereçamos, que a recusa irlandesa expressa por já nem sei quantos votos, mas seguramente por menos de um milhão deles, não pode decidir o destino de quatrocentos milhões de europeus. Seria antidemocrático, como bem se percebe cotejando os dois números; e quanto a isso de comportamentos democráticos qualquer dos tais cavalheiros sapientes e pacientes, é extremamente rigoroso. Fiquei impressionado com o rigor do argumento. Mas lembrei-me de que há uns tempos um outro referendo acerca do mesmo assunto, direi mesmo que há acerca do mesmo tratado embora com outra fatiota, havia ditado em França a sua rejeição. Não sei com quantos votos contra, mas seguramente que com muitos mais que os «Nãos» irlandeses. Lembrei-me também, porque quando a gente começa a lembrar-se de coisas não é fácil parar, que também na Holanda a recusa acontecera graças a uma outra mão-cheia de «Nãos». Somando uns e outros, já as contas se situavam muito acima do milhão de recusas. Mas nessa altura as coisas apenas começavam a estar mal encaradas para os beneméritos explicadores. É que me deu para imaginar qual seria o total dos votos negativos se as consultas dos povos europeus tivessem sido generalizadas, como havia sido explícita ou implicitamente prometido pelos diversos governos, designadamente pelo do nosso País, em vez de substituídas pela muito conveniente versão das ratificações parlamentares. Como se imaginará, não cheguei nem de perto nem de longe à estimativa de um número sequer provável, muito menos me atreverei a garantir que os povos no seu conjunto rejeitariam o Tratado, mas nem o mais convicto dos partidários do «Sim» poderá negar que, nessa eventualidade, a relação entre o número de votos de rejeição e os milhões de europeus que habitam os 27 estados membros seria radicalmente diferente da quase ridícula minoria dos milhares de «Nãos» irlandeses perante os quatrocentos milhões da UE. E essa conclusão simples, quase inevitável, forneceu-me uma tristíssima certeza: a de que os cavalheiros generosos e pacientes que tinham vindo explicar a irrelevância do «Não» irlandês eram afinal uns refinados batoteiros que haviam querido enganar-nos. O que, além do mais, não seria esperável de sujeitos tão bem apresentados.
Mau método
Mas a reflexão não ficou por aqui. É que me lembrei do grande argumento a favor das ratificações parlamentares: o de que as maiorias eleitas e que haviam decidido pelo «Sim» tinham resultado do voto popular e democrático. É certo. Mas os casos francês e holandês já demonstraram que tais maiorias não foram eleitas por antecipadamente anunciarem a sua aprovação parlamentar do Tratado então com outra pele. Mais e pior: então, o que estava generalizadamente previsto e prometido era a submissão do texto a referendo popular. De onde a suspeita (e dizer assim é dizer pouco e ser generoso) de que os parlamentares ratificadores praticaram uma espécie particular de abuso de poder, ou talvez antes de abuso de confiança. Ora, este desfecho do singelo raciocínio desemboca numa evidência que decerto não será só minha mas a de qualquer sujeito que se aplique ao exercício de pensar um pouco sobre estas coisas: a de que os cidadãos comuns, os súbditos de Bruxelas e sobretudo dos poderes efectivos de que Bruxelas é um dos instrumentos formais, têm andado a ser alvo de estratagemas batoteiros.
Não é nada bonito, não é coisa que fique bem a quem a pratique , mas o pior é que também não é coisa que agrade a quem a sofre. E, porque não o é, parece de concluir que este método de construir a unidade europeia é muito capaz de não ser eficaz. Mais: é muito capaz de indiciar que por detrás das trapaças grandes ou pequenas, classifique-as quem o queira fazer, se anicham objectivos que por serem contrários aos verdadeiros interesses dos tais muitos milhões de europeus só mediante trapaças será possível implementar. Não será decerto excessivo profetizar que tal método não levará muito longe a desejável, mas ainda oculta para lá da linha do horizonte, Europa verdadeiramente unida. Que terá de ser a dos povos que ao longo dos séculos têm vindo a construi-la em sucessivos combates contra sucessivos logros e opressões.
Mau método
Mas a reflexão não ficou por aqui. É que me lembrei do grande argumento a favor das ratificações parlamentares: o de que as maiorias eleitas e que haviam decidido pelo «Sim» tinham resultado do voto popular e democrático. É certo. Mas os casos francês e holandês já demonstraram que tais maiorias não foram eleitas por antecipadamente anunciarem a sua aprovação parlamentar do Tratado então com outra pele. Mais e pior: então, o que estava generalizadamente previsto e prometido era a submissão do texto a referendo popular. De onde a suspeita (e dizer assim é dizer pouco e ser generoso) de que os parlamentares ratificadores praticaram uma espécie particular de abuso de poder, ou talvez antes de abuso de confiança. Ora, este desfecho do singelo raciocínio desemboca numa evidência que decerto não será só minha mas a de qualquer sujeito que se aplique ao exercício de pensar um pouco sobre estas coisas: a de que os cidadãos comuns, os súbditos de Bruxelas e sobretudo dos poderes efectivos de que Bruxelas é um dos instrumentos formais, têm andado a ser alvo de estratagemas batoteiros.
Não é nada bonito, não é coisa que fique bem a quem a pratique , mas o pior é que também não é coisa que agrade a quem a sofre. E, porque não o é, parece de concluir que este método de construir a unidade europeia é muito capaz de não ser eficaz. Mais: é muito capaz de indiciar que por detrás das trapaças grandes ou pequenas, classifique-as quem o queira fazer, se anicham objectivos que por serem contrários aos verdadeiros interesses dos tais muitos milhões de europeus só mediante trapaças será possível implementar. Não será decerto excessivo profetizar que tal método não levará muito longe a desejável, mas ainda oculta para lá da linha do horizonte, Europa verdadeiramente unida. Que terá de ser a dos povos que ao longo dos séculos têm vindo a construi-la em sucessivos combates contra sucessivos logros e opressões.