O outro lado da Phoenix

Correia da Fonseca
Logo pela manhãzinha, a televisão deu-nos a notícia que não chegara a tempo de ser manchete na imprensa do dia: a sonda norte-americana Phoenix, há meses disparada em direcção a Marte, pousara finalmente no planeta visado e até já enviava imagens locais para a mamã Terra. Era, já se vê, uma vitória da numerosa equipa de cientistas e técnicos que trabalhara para conseguir aquela proeza, e até aconteceu que a TV nos deu a ver a explosão de júbilo dos que acompanharam os últimos minutos da fase de aterragem, palavra esta que de resto fica tocada pela suspeita de não ser a adequada porque se tratou de pousar em Marte e não na Terra. O júbilo até se justificava por um motivo subsidiário, digamos assim: é que uma tentativa anterior de enviar uma sonda para Marte falhara nos momentos finais, pelo que a sombra de uma natural apreensão pairava sobre a manobra. De resto, é claro que é sempre uma razão de alegria para os trabalhadores de qualquer grau ou especialidade verem que o seu trabalho teve êxito, e ainda mais se, como neste caso, o êxito conseguido tem o ar de ser uma boa notícia para o mundo ou, se quisermos ficar à beira de um provável exagero, para a própria espécie humana. Infelizmente, o mais vulgar é que o bom trabalho dos trabalhadores não seja apreciado como mereceria e menos ainda pago como seria justo, mas esse é um outro assunto que hoje não cabe aqui, muito bem embora, como se vê, se infiltre como preocupação permanente de quem quer tenha olhos para ver e cabeça para pensar. Por outro lado, é há muito sabido que o programa espacial norte-americano carrega consigo uma espécie de pecado original que é o de ter vínculos que o prendem à corrida armamentista e a interesses industriais/financeiros que convivem mal com a ideia da gesta humana chamada Conquista do Espaço. Mas isto não será razão bastante para que não olhemos a chegada da Phoenix a Marte como uma vitória da espécie humana e, assim, para que não partilhemos ao menos um pouco a alegria dos técnicos que testemunharam o acontecimento em directo.

Tantos olhos, tantas mãos

Infelizmente, porém, a irrestrita partilha dessa alegria é impedida pelo conhecimento, mesmo que apenas sumário e distante, daquilo a que talvez possamos chamar «o outro lado da Phoenix». Esse lado é o lado de cá, o lado da Terra e de quem a habita. Vêm à memória os versos de Saramago: «Aqui, na Terra, a fome continua,/A miséria, o luto, e outra vez a fome». E como que para reforçar o nosso impedimento de uma total alegria está o conhecimento de que tudo se passa como se as mãos que, do alto, permitem e porventura estimulam a aventura humana da conquista do espaço são, nas circunstâncias actuais, as que fazem o que podem, e é muito, para condenar três quartos da humanidade, se não mais, à fome, à peste e à guerra, como que empenhados em passar à prática as maldições de um Apocalipse pela sua própria vontade fabricado. Porque é assim, esquecer esse facto fundamental e decisivo seria como que atraiçoar a tal espécie humana de que a chegada a Marte de uma sonda tecnologicamente espantosa é sem dúvida uma glória concreta. É aqui que a voz do poeta (e é demasiado esquecida a produção poética de José Saramago) vem dos confins da memória chamar-nos à razão. Haverá um Espaço para conquistar, mas há também o trabalho prioritário de conquistar a Terra no duplo sentido de a preservar, tarefa cujo êxito parece estar em risco, e de libertá-la. Da fome, das várias formas de peste, da guerra. E é sabido que para essa libertação que é necessária e urgente não dispõem os homens nela empenhados dos mesmos meios técnicos, financeiros e outros, mobilizados para o empreendimento de que a sonda Phoenix de algum modo se tornou a mais recente protagonista. Dispõem, felizmente de outras armas, de outros trunfos. Talvez antes de todos a de serem em maior número: os semeadores das múltiplas formas de horror pelo mundo fora sempre serão, pela própria natureza da sua sinistra tarefa, uma minoria. Depois porque a defesa da vida, a imperiosa necessidade da paz, a instintiva reivindicação de sociedades justas, são factores de mobilização dos muitos milhões que são maioria. Volto a lembrar-me de um poeta, agora de Vasco Costa Marques: «(...) Era impossível ser, com tantos olhos, cego,/e tendo tantas mãos perder a confiança».


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