O desporto e as lutas sociais

A. Mello de Carvalho
O desporto, entendido como a actividade motora condicionada às necessidades do indivíduo, é uma espécie de «alimento» para o corpo do indivíduo. Isso é particularmente evidente nas idades mais baixas. Mas para o adulto constitui uma forma de reconstruir a sua própria força de trabalho e, para o idoso, de manter, por um período mais longo, as suas capacidades (não só a vida, mas viver melhor).
A actividade desportiva coloca-se, assim, ao lado das necessidades de alimentação, trabalho, descanso, instrução e cultura, como um factor decisivo de melhoria da qualidade de vida. Aliás, não é por acaso, simples prazer, ou capricho da moda, que as camadas mais desfavorecidas da população devem exigir a criação de condições para se dedicarem à sua prática, colocando-os em igualdade com os mais favorecidos, ou seja, aquelas que possuem meios financeiros para se dedicarem a ela.
Para se compreender plenamente a função do desporto, correctamente praticado, na vida do indivíduo, é preciso apercebermo-nos de que a actividade física formativa é qualquer coisa que faz parte do mais profundo do nosso ser. Talvez precisamente por isso é que é tão difícil aceder à plena consciência da sua importância.
Assim se juntam duas questões numa perspectiva única. A importância do desporto não é percebida espontaneamente. Mas, por outro lado, o próprio desporto tem de assumir características específicas (técnicas, culturais, organizativas, doutrinárias) para se colocar ao serviço do ser humano. Tudo isto exige o aprofundamento teórico, a fundamentação científica das opções, o estudo sistemático dos fenómenos que o condicionam e o determinam. Numa palavra: é indispensável aceder à cultura «desportiva», ou seja o conjunto de elementos que permitem a cada um situar-se criticamente perante o fenómeno desportivo e realizar uma prática que obedeça a valores emancipadores. Para isso é necessário integrar o processo de acesso ao desporto pelas camadas mais desprotegidas da população na luta global pela democratização completa da sociedade (da qual faz parte, naturalmente, a democratização da prática desportiva sob todos os seus aspectos).

Um direito de todos

Como todas as formas de cultura (não idealistas, nem aristocráticas) os conceitos devem emergir directamente da prática, sofrer uma análise, para determinarem, numa nova fase, as alterações a impor à própria prática. Ora, isto conquista-se através do esforço individual e colectivo, para expressar o direito a uma vida melhor e mais rica.
Na nossa sociedade o que se constata é que ao lado dos grandes progressos sociais conquistados com grandes sacrifícios durante grande parte do século XX, se assiste a um número crescente de indivíduos em situação de desigualdade (Sociedade Dual), privados do acesso a bens essenciais, a formas de vida digna e aos processos culturais no seio dos quais se insere a prática desportiva. A manutenção de grandes massas de espectadores nas bancadas, sem realizarem qualquer tipo de prática, constitui um dos elementos estruturantes do processo de alienação geral dos indivíduos. Na verdade trata-se de uma autêntica mutilação da sua existência e um atentado aos direitos fundamentais da sua existência.
O desporto pode fornecer a sua contribuição própria para transformar esta situação. Mas só o fará se for concebido e organizado ao serviço das populações trabalhadoras no interior de um processo de transformação social global. É esta perspectiva que exige uma constante acção de teorização directamente integrada na prática. De outra forma limitar-nos-emos a reproduzir o figurino habitual com que o desporto foi organizado pela aristocracia inglesa em meados do século XIX, continuado pelos interesses dominantes durante todo o século XX e actualmente explorada, da forma mais despudorada, por aquilo que designamos como o «complexo clube profissional - média (televisão + jornais e revistas desportivas) – publicidade – empresas».
Mais de 30 anos de vida democrática não chegaram para fornecer uma resposta satisfatória aos direitos claramente expressos na Constituição. Pode dizer-se, e diz-se ainda com frequência, que o desporto é coisa menor e que, afinal, esse direito deveria ser viabilizado pela «sociedade civil» visto que não se aceita a «estatização do desporto». Naturalmente que não é isto que interessa, mas sim a criação de condições para que aquele direito se possa exercer por todos, cumprindo o Estado as suas obrigações e, em parceria, a dita sociedade civil, as suas.
Mas como consegui-lo? Como levar o Estado, nas condições actuais da sociedade, a preencher as suas obrigações?


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