Quando contar não basta

Correia da Fonseca
Um relatório ou coisa que o valha revelou que a repartição de «presenças» das diversas forças políticas nos noticiários da RTP durante o ano de 2007 favoreceu largamente o governo e o Partido Socialista. Perante isto, logo se desencadearam lamentos e protestos indignados por parte do PSD, aparentemente esquecido do que como a área dita socialdemocrata foi admiravelmente tratada (por encomendas vindas do alto ou por espontânea vocação sediada na estação pública, esta é dúvida irrelevante para o caso) quando o partido de Santana, Mendes e Menezes estava no governo da Nação. Convém mesmo acrescentar, porque assim fica mais rigoroso o quadro, que às vozes dos que, sendo dirigentes do partido ou figuras deles muito próximos, cumpriram o seu dever, digamos assim, ao soltarem os seus protestos, se adicionaram as de analistas e comentadores que gozam explícita ou implicitamente do estatuto de independentes, o que cai sempre bem e em princípio reforça a sua credibilidade. Quanto à justeza dos dados, não há o menor sinal que justifique dúvidas: mesmo o Partido Socialista os aceitou, limitando-se a explicar que tamanho desequilíbrio terá sido devido à presidência portuguesa da UE durante o segundo semestre do ano, que terá obrigado a um grande protagonismo mediático do governo e também, eventualmente, do partido que o sustenta. Tudo bem, pois. Mas com um pequenino senão: no meio de tantos comentários e da indignação que pelo menos alguns deles veicularam, raras ou mesmo nenhumas foram as referências ao facto de que o PCP foi ainda mais desfavorecido que o PSD na atenção noticiarista da estação pública. É claro que não surpreende que tenha sido assim, pois é uma longa tradição da RTP, e não apenas dela, esquecer-se deste Partido, das suas actividades e iniciativas, reduzir ao tempo mínimo as ocasiões em que as regista, por vezes limitar-se à transmissão de imagens (cuidadosamente escolhidas segundo critérios que se lhe tornaram típicos) sem que as faça acompanhar pelo respectivo som. Outra modalidade interessante, significativa e decerto considerada útil por quem a adopta, é a de substituir o som que se esperaria lá estar por comentários da reportagem que tendem a desmenti-la ou a prejudicá-la. São, como bem se adivinha, comentários de elevado «interesse jornalístico». Quem porventura tenha curiosidade em saber ao certo como se fazem estas coisas, se é que ainda não o sabe, pode esperar uns meses e reparar como são feitas as reportagens da Festa do «Avante!». Algumas delas costumam ser de antologia.

As duas vertentes

Este último aspecto acentua a necessidade de, perante um arrolamento comparado das atenções dispensadas pelos telenoticiários aos diversos partidos, não esquecer que não basta notar que a TV faz referência ao partido A ou ao partido B, nem sequer apenas medir o tempo que a uns e a outros dedica: é preciso atender ao conteúdo de tais referências. Que isto dizer que há referências de sinal positivo, que directa ou indirectamente beneficiam o partido noticiado, e referências de sinal negativo, que envolvem uma tácita ou explícita detracção. Daqui se concluirá, e bem, que isto de notícias e outro tipo de atenções da RTP, ou da SIC, ou da TVI, sobre os partidos, as suas actividades e os seus protagonistas, não deverá ser objecto de mera contabilização quantitativa, sendo necessário considerar a sua vertente qualitativa, só depois sendo possível tirar quaisquer conclusões. E na tal vertente qualitativa há que incluir a maior ou menor fidelidade ao sentido do acontecimento reportado, as imagens colhidas pelas câmaras, a presença ou ausência de comentários jornalísticos hostis ou intoxicantes, até o lugar que a notícia ocupou no alinhamento do serviço noticioso. Quem acompanha com alguma atenção os momentos em que o PCP surge nos noticiários da TV portuguesa sabe como é raro que tudo se passe com irrepreensível correcção. Ou, para que não se incorra aqui em lamento excessivo, digamo-lo de um modo mais soft: como é frequente que uma notícia sobre o PCP contrabandeie uma pequenina peça de propaganda anti-PCP encastoada, por vezes grosseiramente e noutras vezes não tanto, no quadro supostamente neutro do «dever de informar». O que, a propósito dos dados publicados pela ERC e dos protestos que motivaram, devia ter sido referido, pelo menos em atenção carácter positivo ou negativo das referências contabilizadas. E não foi. Nem, sendo as coisas o que sabemos, era esperável que fosse.


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