A inventona de Batepá
O romance Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Marky (escritor que não me merece, pela sua obra anterior, particular apreço; autor que foi de textos menores, roçando o porno-tropicalismo que a ditadura, naturalmente, proibiu – claro, que a literatura portuguesa não ficou mais pobre pelo facto, embora esses livros tenham sido precursores da subliteratura que hoje, em versão feminina, enchem de lixo mediatizado as bancas das livrarias), é um texto só possível de produzir em liberdade, suficientemente distanciado em relação aos factos que relata tornando-o assim num livro sem ressentimentos nem constrangimentos excessivos – característica afinal, apesar dos pesares, comum a grande parte da literatura que tem a questão colonial como matriz. Este romance fala-nos, sem rebuços, dos homens e mulheres que em S. Tomé e Príncipe foram vítimas da ignomínia, do arbítrio, dos mecanismos de cerco, de tortura e morte de que foi capaz o colonialismo salazarento, para submeter e escravizar os povos autóctones.
Partindo de dados factuais (o romance refere os dias trágicos de Fevereiro de 1953) através da transcrição de manifestos, petições, ordens militares, despachos dessa figura sinistra que foi o governador da província coronel Gorgulho, depoimentos de presos e seus familiares, Sum Marky constrói a denúncia pungente e avassaladora de um colonialismo sem regras, desumano e primevo, sublinhando com comedimento formal a extrema desigualdade existente entre brancos e pretos, entre europeus e africanos, pondo a nu a oficial e decantada ausência de preconceitos racistas nos procedimentos administrativos nas ex-colónias.
Através da narrativa da atribulada viagem de Manuel João da Palma Carlos a S. Tomé, enquanto advogado de defesa de alguns presos políticos acusados de instigarem uma rebelião pró-comunista, inventona engendrada pelo governador Gorgulho, seus lugares tenentes e os roceiros que viam no golpe a possibilidade de se apossarem das terras ainda em posse das elites nativas santomenses e de assim perpetuarem ad eternum a mão-de-obra escrava (a CIA e o Pentágono muito teriam a aprender com os processos de terrorismo de estado que o fascismo encenava, caso não nos considerassem uma excrescência ibérica pejada de madraços pedintes com capital em Madrid), o autor consegue traçar um dolorosíssimo quadro dos anos cinquenta portugueses vividos nas condições específicas e particulares da nossa presença em África e do entendimento que os poderes coloniais traçavam dessa especificidade. S. Tomé era um covil de bandidos, escreve Palma Carlos nas suas memórias, referindo-se à administração colonial e sequazes, mas essa denúncia não impediu que os bandidos saíssem impunes de seus crimes, sendo apenas, quando a coisa extravasou fronteiras, suave e paternalmente admoestados, podendo partir em paz para a metrópole e com os alforges a abarrotar.
O cacau, os grandes interesses do capital e dos fazendeiros, a corrupção generalizada, a impunidade dos grandes senhores e das empresas coloniais, as atrocidades da máquina opressora do regime, com a conivência activa da Igreja, as arbitrariedades de um governador megalómano, desmedido de ambição, de uma sordidez rapace – exemplar extremo do pior que o salazarismo criou – tudo isto descrito como se de um pesadelo kafkiano se tratasse; um longo inquérito policial sobre o absurdo no qual o real é tão excessivamente avassalador que nos magoa de vergonha e perplexidade.
Este romance é também a estória de sum Clé Clé, homem sábio, demiurgo, curandeiro das doenças da alma (porque é nela que tudo adoece), num tempo desalmado no qual Deçu/Deus, a existir – mas é tão improvável, ou então cego anda – se esqueceu dos humanos filhos deixando-os entregues à sua sorte e ao arbítrio dos déspotas. Sum Clé-Clé, preto velho, livre de olhar o tempo que passa lento, porque a vida é para se sorver sem pressa nem temores, placidamente, sentindo-a vibrar por dentro da carne como se fosse a música que a chuva executa no zinco da cubata.
__________
Bibliografia: A Guerra Colonial - Realidade e Ficção - Org. de Rui de Azevedo Teixeira - Ed. Notícias
Revista História
Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Markly – Veja
Partindo de dados factuais (o romance refere os dias trágicos de Fevereiro de 1953) através da transcrição de manifestos, petições, ordens militares, despachos dessa figura sinistra que foi o governador da província coronel Gorgulho, depoimentos de presos e seus familiares, Sum Marky constrói a denúncia pungente e avassaladora de um colonialismo sem regras, desumano e primevo, sublinhando com comedimento formal a extrema desigualdade existente entre brancos e pretos, entre europeus e africanos, pondo a nu a oficial e decantada ausência de preconceitos racistas nos procedimentos administrativos nas ex-colónias.
Através da narrativa da atribulada viagem de Manuel João da Palma Carlos a S. Tomé, enquanto advogado de defesa de alguns presos políticos acusados de instigarem uma rebelião pró-comunista, inventona engendrada pelo governador Gorgulho, seus lugares tenentes e os roceiros que viam no golpe a possibilidade de se apossarem das terras ainda em posse das elites nativas santomenses e de assim perpetuarem ad eternum a mão-de-obra escrava (a CIA e o Pentágono muito teriam a aprender com os processos de terrorismo de estado que o fascismo encenava, caso não nos considerassem uma excrescência ibérica pejada de madraços pedintes com capital em Madrid), o autor consegue traçar um dolorosíssimo quadro dos anos cinquenta portugueses vividos nas condições específicas e particulares da nossa presença em África e do entendimento que os poderes coloniais traçavam dessa especificidade. S. Tomé era um covil de bandidos, escreve Palma Carlos nas suas memórias, referindo-se à administração colonial e sequazes, mas essa denúncia não impediu que os bandidos saíssem impunes de seus crimes, sendo apenas, quando a coisa extravasou fronteiras, suave e paternalmente admoestados, podendo partir em paz para a metrópole e com os alforges a abarrotar.
O cacau, os grandes interesses do capital e dos fazendeiros, a corrupção generalizada, a impunidade dos grandes senhores e das empresas coloniais, as atrocidades da máquina opressora do regime, com a conivência activa da Igreja, as arbitrariedades de um governador megalómano, desmedido de ambição, de uma sordidez rapace – exemplar extremo do pior que o salazarismo criou – tudo isto descrito como se de um pesadelo kafkiano se tratasse; um longo inquérito policial sobre o absurdo no qual o real é tão excessivamente avassalador que nos magoa de vergonha e perplexidade.
Este romance é também a estória de sum Clé Clé, homem sábio, demiurgo, curandeiro das doenças da alma (porque é nela que tudo adoece), num tempo desalmado no qual Deçu/Deus, a existir – mas é tão improvável, ou então cego anda – se esqueceu dos humanos filhos deixando-os entregues à sua sorte e ao arbítrio dos déspotas. Sum Clé-Clé, preto velho, livre de olhar o tempo que passa lento, porque a vida é para se sorver sem pressa nem temores, placidamente, sentindo-a vibrar por dentro da carne como se fosse a música que a chuva executa no zinco da cubata.
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Bibliografia: A Guerra Colonial - Realidade e Ficção - Org. de Rui de Azevedo Teixeira - Ed. Notícias
Revista História
Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Markly – Veja