Talvez meio milhão
Na passada segunda-feira, o «Prós e Contras» abordou mais uma vez os problemas do ensino em Portugal. Como se sabe, já por lá andara, e porventura não muito bem, pelo que talvez se possa dizer que voltou ao local do crime. Não se colocando sequer a hipótese, ora essa!, de esse regresso ter qualquer motivação da ordem das conveniências políticas, sobra a eventualidade de a reincidente abordagem do tema se dever a escassez de assuntos suficientemente relevantes e de interesse geral. Ora, acontece que tais questões existem e algumas delas parecem esperar que a estação pública de televisão se lembre delas com adequado vagar. Por exemplo, nas suas «Escolhas» do domingo último, Marcelo Rebelo de Sousa aludiu, embora apenas de passagem, aos cerca de cem mil fogos que por esse País fora estão (ainda) ocupados por adquirentes que não podem pagar à banca financiadora o valor das prestações que, desde sempre altas, têm vindo a ser agravadas pelas sucessivas subidas das taxas de juros. O número de cem mil, multiplicou-o o professor por cinco para chegar à estimativa de meio milhão para o número de portugueses ameaçados de ficarem sem casa ou, no mínimo, de estarem já mergulhados numa situação de permanente angústia. Para falar com franqueza, parece de admitir que o factor «cinco» escolhido pelo professor para calcular o número de portugueses atingidos por aquela desgraçada situação seja excessivo: supor que cada casal tenha em média três filhos (ou, de qualquer modo, três outros membros do agregado familiar alojados no mesmo fogo) tem o ar de ser irrealista. Mas Marcelo Rebelo de Sousa anda cada vez mais a mostrar ser do PSD mesmo quando faz «análises» supostamente objectivas, e por isso não é de estranhar que tenha arredondado a conta por excesso, coisa de cem mil criaturas, mais coisa menos coisa. Ainda assim, ficam quatrocentos mil portugueses a estrebuchar entre as dívidas à banca e a necessidade de terem um lar. É muita gente. Adicione-se-lhe os cerca de dois milhões de pobres que as estatísticas revelam e que dificilmente se contam entre os que compraram casa própria e encontraremos um total capaz de incomodar o sono de qualquer português sensível ao País que existe para lá dos limites da sua própria pele.
Os «azares» emboscados
Ora, aí estará um assunto a que o «Prós e Contras» poderia dedicar-se, evitando assim o regresso a temas já abordados ainda que revelando agora aspectos aparentemente novos. É claro que o caso do já famoso telemóvel do Porto mobilizou as atenções gerais, o que significa que preparou audiências, e é natural que o programa queira ir ao encontro delas. Porém, talvez caiba perguntar se não é seu dever, enquanto programa de uma operadora a quem foi confiado o serviço público de TV, abordar um problema que é de facto um drama para meio milhão de portugueses ou um pouco menos. Dir-se-á que a questão é melindrosa, a sua abordagem poderá implicar que de passagem se fale da versão portuguesa da «bolha» imobiliária que rebentou estrondosamente nos bem-amados Estados Unidos, que parece ter uma significativa «filial» em Espanha e que, por cá ainda não se sabe que estragos poderá provocar. Mas as raízes do mal são outras, têm a ver com longos anos de especulação imobiliária que projectaram o custo da habitação para níveis de facto fora do alcance do cidadão obrigado pelo conjunto de pressões e necessidades a assumir compromissos que muitas vezes só poderia cumprir «se não lhe acontecesse nenhum “azar”». Milhares de vezes aconteceu, porém, que o «azar» estava emboscado numa das esquinas da vida e até tinha nome, até tinha autores embora de perfil difuso: foi o encerramento de uma empresa, foi a não renovação de um contrato, foi uma doença prolongada com subsídio de doença escasso e muitas vezes tardio. Tudo isto, e o mais que aqui não se escreve até porque nem sequer se imagina, configura um assunto triste, e a TV não gosta de tristezas, de tristezas destas, embora doidinha por desgraças espectaculares, que são uma outra coisa. Mas talvez a TV pública não deva eximir-se a falar delas. Ou melhor: talvez não deva, ao omiti-las, ao silenciá-las, fazer de conta de que não existem. Insisto: a situação do tal meio milhão de portugueses (ou um pouco menos...) pouparia ao «Prós e Contras» o regresso da passada segunda-feira. Mas estaria certo em qualquer programa transmitido pela RTP 1 em horário dito «nobre».
Os «azares» emboscados
Ora, aí estará um assunto a que o «Prós e Contras» poderia dedicar-se, evitando assim o regresso a temas já abordados ainda que revelando agora aspectos aparentemente novos. É claro que o caso do já famoso telemóvel do Porto mobilizou as atenções gerais, o que significa que preparou audiências, e é natural que o programa queira ir ao encontro delas. Porém, talvez caiba perguntar se não é seu dever, enquanto programa de uma operadora a quem foi confiado o serviço público de TV, abordar um problema que é de facto um drama para meio milhão de portugueses ou um pouco menos. Dir-se-á que a questão é melindrosa, a sua abordagem poderá implicar que de passagem se fale da versão portuguesa da «bolha» imobiliária que rebentou estrondosamente nos bem-amados Estados Unidos, que parece ter uma significativa «filial» em Espanha e que, por cá ainda não se sabe que estragos poderá provocar. Mas as raízes do mal são outras, têm a ver com longos anos de especulação imobiliária que projectaram o custo da habitação para níveis de facto fora do alcance do cidadão obrigado pelo conjunto de pressões e necessidades a assumir compromissos que muitas vezes só poderia cumprir «se não lhe acontecesse nenhum “azar”». Milhares de vezes aconteceu, porém, que o «azar» estava emboscado numa das esquinas da vida e até tinha nome, até tinha autores embora de perfil difuso: foi o encerramento de uma empresa, foi a não renovação de um contrato, foi uma doença prolongada com subsídio de doença escasso e muitas vezes tardio. Tudo isto, e o mais que aqui não se escreve até porque nem sequer se imagina, configura um assunto triste, e a TV não gosta de tristezas, de tristezas destas, embora doidinha por desgraças espectaculares, que são uma outra coisa. Mas talvez a TV pública não deva eximir-se a falar delas. Ou melhor: talvez não deva, ao omiti-las, ao silenciá-las, fazer de conta de que não existem. Insisto: a situação do tal meio milhão de portugueses (ou um pouco menos...) pouparia ao «Prós e Contras» o regresso da passada segunda-feira. Mas estaria certo em qualquer programa transmitido pela RTP 1 em horário dito «nobre».