Desporto e (é) política (2)

A. Mello de Carvalho
A defesa constante de que o desporto nada tem a ver com a política acompanhou sempre a história do próprio desporto. «Dentro do campo não se faz política», o que é verdade, evidentemente. «Dentro do clube não se faz política», o que não é verdade.
Esta dupla perspectiva constituiu a base de uma tomada de posição claramente politizada assente em três concepções fundamentais:
- o desporto como actividade «neutra», através da qual se procurou isolar o desporto do contexto social em que exprimia com o objectivo de mais facilmente o manipular;
- o desporto como forma de fazer desaparecer as diferenças e os antagonismos de classe, na medida em que o encontro entre os operários e os seus patrões no terreno de jogos, vestidos da mesma forma e submetidos a regras idênticas, liquidava todos os laivos da luta de classes;
- o desporto concebido como um elemento de prestígio para a política do poder, especialmente explorando os resultados alcançados pelos atletas nas provas internacionais, em que o nacionalismo, o individualismo e o «chauvinismo» constituíram sempre os traços marcantes.
A concepção do desporto «neutro», encerra, no contexto global desta análise, um significado particular. A maioria dos dirigentes dos clubes desportivos afirma frequentemente que «aqui não se faz política». De facto, o que se pretende dizer com isto é que não se procura compreender o papel que o clube representa dentro da comunidade. Ora, este constitui, com grande frequência, o mais poderoso grupo de pressão local, ou, no caso dos pequenos clubes, a instituição que exerce maior influência na área da sua implantação comunitária.
Muitos destes dirigentes agem desta forma para evitar a dinâmica conflituosa que se pode instalar quando se verificam tomadas de posição de carácter político. Mas, na realidade, o apolitismo está intimamente relacionado com a defesa dos privilégios dos grupos dominantes, com a perpetuação do poder.
Isto significa, com mais frequência do que se imagina, que a participação voluntária do dirigente está muito relacionada com a vontade de adaptação e de conformismo com os valores dominantes do que com a contestação da sociedade vigente. O sentido político do apolitismo assume, visto deste ângulo, um significado específico de aceitação da hierarquia social implantada e nada, ou pouco tem a ver com a tão propalada vontade de conseguir uma maior eficácia no funcionamento da instituição (é esta uma das mais poderosas forças de resistência à mudança).
Parece ser possível, com esta análise sucinta, definir o fio condutor de uma tomada de posição, autenticamente política, que, apesar de tão frequentemente denunciada, continua a marcar as atitudes e opiniões de muitos dos «actores» da vida desportiva. Fio condutor que nos leva a compreender, em toda a sua dimensão, a recente concepção que, invertendo completamente a antiga posição do amadorismo, defende o profissionalismo e a comercialização generalizada das actividades como forma de manter os mesmos objectivos («quem quer desporto paga-o») e alcançar as mesmas finalidades (estruturação de um novo mercado, obtenção de lucros, segregação social das práticas e utilização alienante do desporto - espectáculo).
Esta nova atitude, justificada fundamentalmente pela liquidação das antigas «hipocrisias», tem consequências culturais e sociais graves na medida em que assenta em nova «hipocrisia»: a de que o desporto é «para todos», quando se conhecem os enormes obstáculos sociais para que tal se verifique, a de que o desporto se «purificou» das antigas «aras», quando elas se mantêm, se acentuam, ou surgem sob novos aspectos. Não é por acaso que tantas vezes se refere que o desporto está «numa encruzilhada» referida aos «valores» que o devem nortear.
Assim, a concepção que afirma o desporto como dupla necessidade social (aperfeiçoamento humano e resposta a necessidades de uma melhor qualidade de vida) mantém-se totalmente actual. Não só porque põe em causa uma visão consumista da prática desportiva, mas porque também considera que o desporto não limita a sua influência às formas de procura de equilíbrio e compensação às condições de vida e de trabalho, ou como simples factor de recreação, apesar de defender a sua importância. Mas a actividade desportiva pode fornecer ao indivíduo, ao trabalhador de hoje, formas de enriquecimento pessoal global, na medida em que o solicita em todos os planos da sua personalidade: física, intelectual, afectiva, cultural e social.
Nesta perspectiva o desporto pode ser uma importante fonte de educação social, de afirmação individual e colectiva e de desenvolvimento de capacidades. É neste sentido que ele constitui uma necessidade social de crescente importância e é por isso que ele está indissoluvelmente relacionado com a política, quando entendido como «sistema» integrado no funcionamento da sociedade global.


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