O apagão do capitalismo
Cerca de 50 milhões de pessoas foram afectadas pelo corte de energia ocorrido na tarde de quinta-feira, 14 Agosto, de Nova Iorque a Detroit, nos EUA, até Toronto e Otava, no Canadá.
Uma superpotência com uma rede eléctrica do terceiro mundo
Afastadas as primeiras hipóteses de explicação – um ataque terrorista ou queda de raios sobre as centrais no Niagara – as autoridades norte-americanas prometem uma investigação rigorosíssima às causas da maior avaria eléctrica de que há memória na história do EUA.
Um vasto território habitado por 50 milhões de pessoas, das quais 10 milhões no Canadá, ficou subitamente privado de energia eléctrica. Da capital do automóvel, Detroit, no Estado de Michigan, a Oeste, passando por cidades como Cleveland (Ohio), até Toronto e Otava (Canadá), a Norte, descendo até Connecticut, a Leste, e à Pensilvânia, no Sul,
No estado de Nova Iorque foi declarado o estado de emergência e cidades como Cleveland decretaram o recolher obrigatório para evitar pilhagens (como as verificadas em Julho de 1977, em que 4500 pessoas foram detidas pela polícia por actos de destruição e saque).
Quatro centrais nucleares nos estados de Ohio e de Nova Iorque foram encerradas, o mesmo acontecendo com sete aeroportos. Milhares de pessoas ficaram encurraladas no metropolitano e em elevadores. Muitos foram obrigados a pernoitar nas ruas de Nova Iorque, enquanto esperavam por um hipotético regresso dos transportes públicos.
No dia seguinte, sexta-feira, 15, os três gigantes norte-americanos da construção automóvel, General Motors, Ford e Chrysler, anunciavam que a falha de energia obrigara ao encerramento de 54 fábricas.
A General Motors interrompeu a laboração em 17 fábricas, de três estados norte-americanos e, no Canadá, cerca de cinco mil funcionários, que trabalham nos escritórios da empresa em Detroit, foram convidados a ficar em casa. No caso da Ford, as 23 fábricas que se localizam na zona afectada pelo apagão foram encerradas. Por seu lado, a Chrysler indicou 14 das suas 31 fábricas foram desactivadas.
Causas conhecidas
Nova Iorque já tinha mergulhado na escuridão em 1965, 1977, 1981 e 1983. Desde a primeira grande falha, que afectou 30 milhões de pessoas, que se tornou evidente o problema do envelhecimento e degradação da rede eléctrica. Contudo, as melhorias foram apenas parciais o que levou à repetição das avarias.
A respeito, William Richarson, secretário da Energia durante a presidência de Bill Clinton e actual governador do Novo-México, afirmava no dia do apagão: «Nós somos uma superpotência com uma rede do terceiro mundo.» E acrescentou, revelando a essência do problema, que os defeitos do sistema resultam do facto de que os poderes públicos «não impuseram aos fornecedores de energia [privados] critérios draconianos de segurança».
Conhecedora da situação, a Comissão Federal Reguladora da Energia (FERC) aproveitou para apresentar um plano reestrutruração do sector eléctrico norte-americano, defendendo a transferência de competências em matéria de energia dos estados federais e empresas produtoras para novas entidades criadas ao nível nacional, que passariam a controlar o transporte de energia e a supervisionar o processo de modernização do sistema de transporte.
Apesar de parecer razoável, o plano deparou-se com a forte oposição do Congresso, o que levou a administração Bush a declarar que aceita uma moratória de três anos sobre a «ousada» proposta de regulamentação da actividade privada no sector.
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O orgulho russo
Do lado de cá do Atlântico, os responsáveis da rede da electricidade da Rússia excluíam a possibilidade de uma avaria comparável ao apagão americano. «Uma ocorrência do género na Rússia é pouco provável, uma vez que os sistemas de fornecimento da electricidade são diferentes», afirmava a Companhia Nacional de Sistemas Unidos da Energia da Rússia, citada pela agência Interfax.
Como esclareceu um especialista da empresa, a Rússia, diferentemente dos EUA, possui um sistema unificado que permite uma rápida redistribuição de energia eléctrica entre as regiões do país. O sistema é comandado a partir de um único centro, uma espécie de painel de controlo que torna possível prevenir casos de emergência e evitar cortes de energia globais.
O especialista esqueceu-se no entanto de referir que esse sistema foi criado no tempo da União Soviética e que o mesmo princípio, de comando centralizado, era aplicado a outras redes como a ferroviária ou de ligações aéreas, estas últimas entretanto já destruídas pela política de privatizações iniciada no tempo de Ielsin.
De resto, embora tenha óbvias vantagens, nada garante que o actual eficaz sistema eléctrico único seja mantido no futuro. É que à frente da holding estatal está Anatoli Tchubais, ex-responsável da economia no governo de Boris Ieltsin.
Partidário do neoliberalismo, foi um dos principais responsáveis pela introdução dos impulsionadores dos mecanismos do mercado na Rússia e o autor das primeiras privatizações no país após o desmembramento da URSS. Por isso, o nome de Tchubais é sinónimo de desgraça para dezenas de milhões de russos que vivem abaixo do nível da pobreza.
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O esplendor do mercado
Como refere o editorial do jornal francês «Le Monde», «a electricidade foi durante muito tempo símbolo de progresso, de libertação do homem, da sua vitória sobre a natureza. «A gigantesca avaria», refere o diário, não só mostrou «como a nossa sociedade ficou fragilizada devido à sua dependência desta fonte de energia», como provou «os prejuízos que podem causar uma privatização atabalhoada e assente em lucros de curto prazo».
Notando que os EUA investiram na sua rede eléctrica o mesmo que os britânicos, apesar de registarem um consumo dez vezes superior, o editorialista chama a atenção para uma contradição evidente entre o interesse público e os interesses privados: «O maior consumidor de energia do mundo mostrou-se sempre sedento de fontes de abastecimento. Construiu centrais de produção, mas nunca se preocupou com o transporte da electricidade, uma vez que esta não é uma actividade rentável. Tanto mais que os operadores privados que partilham uma rede privatizada não têm interesse em investir num domínio que poderia atrair novos concorrentes para a sua área de actividade. Acresce que o seu único objectivo é o lucro. Por vezes mesmo a qualquer preço, como mostrou o escândalo Enron em Maio de 2001, no Estado da Califórnia».
O «Monde» observa ainda que nenhum país está ao abrigo de avarias gerais, mas o seu risco aumentará «em particular se a electricidade devesse ser submetida às leis do mercado totalmente desregulado e perdesse a sua especificidade de serviço público».
Um vasto território habitado por 50 milhões de pessoas, das quais 10 milhões no Canadá, ficou subitamente privado de energia eléctrica. Da capital do automóvel, Detroit, no Estado de Michigan, a Oeste, passando por cidades como Cleveland (Ohio), até Toronto e Otava (Canadá), a Norte, descendo até Connecticut, a Leste, e à Pensilvânia, no Sul,
No estado de Nova Iorque foi declarado o estado de emergência e cidades como Cleveland decretaram o recolher obrigatório para evitar pilhagens (como as verificadas em Julho de 1977, em que 4500 pessoas foram detidas pela polícia por actos de destruição e saque).
Quatro centrais nucleares nos estados de Ohio e de Nova Iorque foram encerradas, o mesmo acontecendo com sete aeroportos. Milhares de pessoas ficaram encurraladas no metropolitano e em elevadores. Muitos foram obrigados a pernoitar nas ruas de Nova Iorque, enquanto esperavam por um hipotético regresso dos transportes públicos.
No dia seguinte, sexta-feira, 15, os três gigantes norte-americanos da construção automóvel, General Motors, Ford e Chrysler, anunciavam que a falha de energia obrigara ao encerramento de 54 fábricas.
A General Motors interrompeu a laboração em 17 fábricas, de três estados norte-americanos e, no Canadá, cerca de cinco mil funcionários, que trabalham nos escritórios da empresa em Detroit, foram convidados a ficar em casa. No caso da Ford, as 23 fábricas que se localizam na zona afectada pelo apagão foram encerradas. Por seu lado, a Chrysler indicou 14 das suas 31 fábricas foram desactivadas.
Causas conhecidas
Nova Iorque já tinha mergulhado na escuridão em 1965, 1977, 1981 e 1983. Desde a primeira grande falha, que afectou 30 milhões de pessoas, que se tornou evidente o problema do envelhecimento e degradação da rede eléctrica. Contudo, as melhorias foram apenas parciais o que levou à repetição das avarias.
A respeito, William Richarson, secretário da Energia durante a presidência de Bill Clinton e actual governador do Novo-México, afirmava no dia do apagão: «Nós somos uma superpotência com uma rede do terceiro mundo.» E acrescentou, revelando a essência do problema, que os defeitos do sistema resultam do facto de que os poderes públicos «não impuseram aos fornecedores de energia [privados] critérios draconianos de segurança».
Conhecedora da situação, a Comissão Federal Reguladora da Energia (FERC) aproveitou para apresentar um plano reestrutruração do sector eléctrico norte-americano, defendendo a transferência de competências em matéria de energia dos estados federais e empresas produtoras para novas entidades criadas ao nível nacional, que passariam a controlar o transporte de energia e a supervisionar o processo de modernização do sistema de transporte.
Apesar de parecer razoável, o plano deparou-se com a forte oposição do Congresso, o que levou a administração Bush a declarar que aceita uma moratória de três anos sobre a «ousada» proposta de regulamentação da actividade privada no sector.
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O orgulho russo
Do lado de cá do Atlântico, os responsáveis da rede da electricidade da Rússia excluíam a possibilidade de uma avaria comparável ao apagão americano. «Uma ocorrência do género na Rússia é pouco provável, uma vez que os sistemas de fornecimento da electricidade são diferentes», afirmava a Companhia Nacional de Sistemas Unidos da Energia da Rússia, citada pela agência Interfax.
Como esclareceu um especialista da empresa, a Rússia, diferentemente dos EUA, possui um sistema unificado que permite uma rápida redistribuição de energia eléctrica entre as regiões do país. O sistema é comandado a partir de um único centro, uma espécie de painel de controlo que torna possível prevenir casos de emergência e evitar cortes de energia globais.
O especialista esqueceu-se no entanto de referir que esse sistema foi criado no tempo da União Soviética e que o mesmo princípio, de comando centralizado, era aplicado a outras redes como a ferroviária ou de ligações aéreas, estas últimas entretanto já destruídas pela política de privatizações iniciada no tempo de Ielsin.
De resto, embora tenha óbvias vantagens, nada garante que o actual eficaz sistema eléctrico único seja mantido no futuro. É que à frente da holding estatal está Anatoli Tchubais, ex-responsável da economia no governo de Boris Ieltsin.
Partidário do neoliberalismo, foi um dos principais responsáveis pela introdução dos impulsionadores dos mecanismos do mercado na Rússia e o autor das primeiras privatizações no país após o desmembramento da URSS. Por isso, o nome de Tchubais é sinónimo de desgraça para dezenas de milhões de russos que vivem abaixo do nível da pobreza.
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O esplendor do mercado
Como refere o editorial do jornal francês «Le Monde», «a electricidade foi durante muito tempo símbolo de progresso, de libertação do homem, da sua vitória sobre a natureza. «A gigantesca avaria», refere o diário, não só mostrou «como a nossa sociedade ficou fragilizada devido à sua dependência desta fonte de energia», como provou «os prejuízos que podem causar uma privatização atabalhoada e assente em lucros de curto prazo».
Notando que os EUA investiram na sua rede eléctrica o mesmo que os britânicos, apesar de registarem um consumo dez vezes superior, o editorialista chama a atenção para uma contradição evidente entre o interesse público e os interesses privados: «O maior consumidor de energia do mundo mostrou-se sempre sedento de fontes de abastecimento. Construiu centrais de produção, mas nunca se preocupou com o transporte da electricidade, uma vez que esta não é uma actividade rentável. Tanto mais que os operadores privados que partilham uma rede privatizada não têm interesse em investir num domínio que poderia atrair novos concorrentes para a sua área de actividade. Acresce que o seu único objectivo é o lucro. Por vezes mesmo a qualquer preço, como mostrou o escândalo Enron em Maio de 2001, no Estado da Califórnia».
O «Monde» observa ainda que nenhum país está ao abrigo de avarias gerais, mas o seu risco aumentará «em particular se a electricidade devesse ser submetida às leis do mercado totalmente desregulado e perdesse a sua especificidade de serviço público».