A hemorragia
A reportagem da SIC intitulava-se «Os Novos Emigrantes», mas o título era um pouco excessivo, quase enganoso: tratava-se apenas de uma parte dos trabalhadores portugueses que nos últimos tempos se viram obrigados a retomar os caminhos da emigração. No caso abordado pela reportagem, eram gente do interior norte a quem a falência de empresas da construção civil e da indústria têxtil roubara o posto de trabalho. Foi-nos dito então que o número de portugueses a trabalhar em Espanha é já de oitenta mil. O grupo que nos foi mostrado ainda será relativamente privilegiado: pode vir a Portugal durante o fim-de-semana e abalar de novo para Espanha quando chega a noite de domingo. Bem se sabe que não é o que acontece com a esmagadora maioria da emigração portuguesa, tal como se sabe que o êxodo de mão-de-obra portuguesa para o estrangeiro, que parecia em travagem logo após Abril, reapareceu e ganhou uma triste força nos últimos anos. Em verdade, a nossa principal exportação é hoje a de carne humana. Anda o senhor presidente da República muito preocupado, e decerto com razão, perante o emagrecimento demográfico do País e, por consequência, a apelar para que os casais portugueses tenham mais filhos. Como já aqui se sublinhou, há semanas, responder positivamente ao apelo presidencial não é tarefa fácil perante as actuais condições de vida. Parece que a eliminação dos motivos que empurram para a emigração milhares de trabalhadores jovens, isto é, em idade reprodutiva, poderia ser uma boa contribuição para atenuar os cuidados do PR quanto a esta matéria. Para tanto, porém, seria obviamente indispensável a adopção de políticas que visassem a fixação da mão-de-obra portuguesa no território de Portugal, e os números revelam que os sucessivos governos não têm sido capazes ou não têm querido cometer tamanha façanha.
Apenas uma gota
A reportagem da SIC falou-nos, pois, apenas de um limitado punhado de homens entre os tais oitenta mil que trabalham em Espanha, acontecendo mesmo que as condições em que vão, vêm e permanecem na área de Valadolid durante a chamada semana útil são relativamente aceitáveis. Não se dirá que uma reportagem de âmbito tão desambicioso foi desprovida de méritos: nos tempos que vão correndo, se uma estação se lembra de falar dos trabalhadores e das suas dificuldades é quase caso para Te Deum e missa cantada. Contudo, é certo que ao falarmos de poucos se corre o risco de esquecermos muitos, e neste caso o esquecimento reveste-se de uma especial gravidade porque pode implicar o sentimento de que os muitos não existem. Ora, acontece que os trabalhadores de que a reportagem nos falou são apenas uma gota de água na corrente caudalosa da emigração. Talvez melhor se diria que são uma gota de sangue, pois é de uma hemorragia que se trata, e o que está a acontecer é que o País está a ficar anémico, aliás em mais de um sentido. É certo que na TV portuguesa, até em mais de um canal, se tem falado da emigração portuguesa, muitas vezes globalmente designada por Diáspora, que é uma palavra bonita e até com uma vaga conotação épica. A questão, porém, é a das cores com que em regra, sem excepção que me lembre, é pintada a vida dos emigrantes nos diversos países onde se instalaram. São-nos contados os seus êxitos, a confortável situação conseguida, mas não o longo percurso de amarguras, quando não de horrores, percorrido talvez pela maioria deles. Também não são lembradas as tentativas falhadas e tudo o que se lhes terá seguido. São usadas, enfim, as cores alegres e vistosas, são rejeitadas como que por um filtro as tintas negras. Sendo assim, bem se compreenderá que o acto de tácita solidariedade representada pela atenção que uma estação de TV dispensa à emigração fica pelo menos gravemente mutilada. Dir-se-ia que falta nessa abordagem uma espécie de herança recolhida nos textos que José Rodrigues Miguéis nos deixou sobre a imigração portuguesa nos Estados Unidos. Dir-se-á talvez, com evidente razão, que os tempos são outros. É claro que sim, mas talvez o essencial das situações não seja sempre muito diferente. E, na dúvida, parece desejável, adequado, quase um imperativo ético, que a televisão, sobretudo a pública mas também a privada, investigue.
Apenas uma gota
A reportagem da SIC falou-nos, pois, apenas de um limitado punhado de homens entre os tais oitenta mil que trabalham em Espanha, acontecendo mesmo que as condições em que vão, vêm e permanecem na área de Valadolid durante a chamada semana útil são relativamente aceitáveis. Não se dirá que uma reportagem de âmbito tão desambicioso foi desprovida de méritos: nos tempos que vão correndo, se uma estação se lembra de falar dos trabalhadores e das suas dificuldades é quase caso para Te Deum e missa cantada. Contudo, é certo que ao falarmos de poucos se corre o risco de esquecermos muitos, e neste caso o esquecimento reveste-se de uma especial gravidade porque pode implicar o sentimento de que os muitos não existem. Ora, acontece que os trabalhadores de que a reportagem nos falou são apenas uma gota de água na corrente caudalosa da emigração. Talvez melhor se diria que são uma gota de sangue, pois é de uma hemorragia que se trata, e o que está a acontecer é que o País está a ficar anémico, aliás em mais de um sentido. É certo que na TV portuguesa, até em mais de um canal, se tem falado da emigração portuguesa, muitas vezes globalmente designada por Diáspora, que é uma palavra bonita e até com uma vaga conotação épica. A questão, porém, é a das cores com que em regra, sem excepção que me lembre, é pintada a vida dos emigrantes nos diversos países onde se instalaram. São-nos contados os seus êxitos, a confortável situação conseguida, mas não o longo percurso de amarguras, quando não de horrores, percorrido talvez pela maioria deles. Também não são lembradas as tentativas falhadas e tudo o que se lhes terá seguido. São usadas, enfim, as cores alegres e vistosas, são rejeitadas como que por um filtro as tintas negras. Sendo assim, bem se compreenderá que o acto de tácita solidariedade representada pela atenção que uma estação de TV dispensa à emigração fica pelo menos gravemente mutilada. Dir-se-ia que falta nessa abordagem uma espécie de herança recolhida nos textos que José Rodrigues Miguéis nos deixou sobre a imigração portuguesa nos Estados Unidos. Dir-se-á talvez, com evidente razão, que os tempos são outros. É claro que sim, mas talvez o essencial das situações não seja sempre muito diferente. E, na dúvida, parece desejável, adequado, quase um imperativo ético, que a televisão, sobretudo a pública mas também a privada, investigue.