De súbito, os índios

Correia da Fonseca
Um pouco inesperadamente, o canal História, distribuído por cabo, transmitiu na passada segunda-feira uma reportagem acerca da Bolívia actual, a Bolívia do índio Ivo Morales e já não dos brancos, ou quando muito mestiços, que tradicionalmente governavam o país numa espécie de prolongamento no tempo da velha gestão colonial. O carácter inesperado da reportagem, assinada por Jean-François Boyer e produzida para a francesa TV5, residiu no facto de não se tratar de um trabalho que exprimisse as dores dos Estados Unidos e interesses anexos, mas sim que, pelo contrário, explicou serena e objectivamente o que se passa na Bolívia e narrou o caminho percorrido até se chegar ao momento actual. Como se sabe, andam os Estados Unidos cheios de dores na zona da América Latina, que se haviam habituado a encarar como suas colónia segura: como se não lhes bastasse a impertinente resistência de Cuba desde 59, defrontam agora o alastramento das sua nevralgias à Venezuela, à Bolívia, ao Equador, situação a que se acrescenta o sentimento de que nem mesmo o resto do continente está tão seguro quanto desejariam Washington e a Wall Street. Entretanto, no outro lado do mar, designadamente no Iraque e no Afeganistão, as coisas vão tão mal quanto se vai sabendo ou ainda pior. Está visto que isto de ser norte-americano e imperialista já não é o que era.

O Ché teria gostado

A reportagem transmitida pelo História intitulava-se «A Vingança dos Índios», mas não incluía cenas sangrentas e escalpes como a viciação no consumo de westerns USA poderia fazer supor. Esta vingança arrancou e prossegue por via pacífica, consistiu inicialmente na eleição para a presidência da República da Bolívia de um índio que vinha da pobreza e do sindicalismo com um projecto político que visa esta coisa simples mas arriscada e difícil que é devolver a Bolívia, e naturalmente as riquezas naturais que são legítimo património do povo, aos bolivianos. Acontece que 90% dos naturais da Bolívia são índios, são pobres, e quase todos têm vindo a sofrer a infeliz tradição de serem brutalmente explorados de uma forma ou de outra. Compreende-se, assim, que quando uma importante massa deles se deu conta da sua situação, alertados que foram pela acção de sindicalistas, de comissões de moradores e de outras formas de cidadania de base, a vitória eleitoral de Evo Morales tenha sido fácil. Menos fácil será talvez a defesa do processo radicalmente transformador em curso: os Estados Unidos e outros poderosos interesses estrangeiros não gostam deste género de transformações, acham que a Bolívia estava muito bem como estava, decerto que um ainda poderoso segmento da população representado pela alta burguesia local coincide nessa opinião. Coligados aberta ou surdamente, submetem Evo Morales a um nutrido bombardeamento propagandístico que tem dois temas principais, o bom entendimento do presidente boliviano com Hugo Chavez e com a Cuba de Fidel e o aliás tradicional papel do cultivo da coca na economia agrária da Bolívia. Quanto a este ponto, também a reportagem de Jean-François Boyer explicou: o objectivo do governo Morales é limitar a utilização da coca à produção de fármacos e cosméticos, áreas onde tem vindo a ser subutilizada, e os grandes lucros da utilização da folha para o fabrico de cocaína situam-se esmagadoramente no exterior. Por isso, exército e polícia da Bolívia colaboram activamente na destruição de culturas ilegais. Enquanto isto, prossegue a luta há muito iniciada para que a água e o gás da Bolívia voltem às mãos dos bolivianos, de onde aliás nunca deviam ter saído. Este objectivo e outros afins, a par da tomada do poder pelo povo da Bolívia, é que consubstancia «a vingança dos índios». Quem o diz não sou eu, mas a reportagem transmitida pelo canal História. E quanto à vingança, o Ché, que ali foi assassinado por ordem da CIA quando se batia por aquele povo, havia de gostar dela.


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